Nos últimos dias, já alguma vez acordaram pela manhã, limparam a baba do canto da boca, tentaram abrir os olhos que se habituavam à luz e pensaram, passados alguns segundos: "Por momentos pensei que tivesse sido tudo um sonho"? Depois, lembraram-se que que tudo o que está a acontecer é real e que para a maioria de nós é a primeira vez que estamos a passar por algo que parece saído de um filme. Por um lado, isso faz de nós privilegiados e talvez seja por isso que nos vai custar ultrapassar isto.
Talvez seja a primeira vez que a minha geração está a fazer sacrifícios pelos outros. Talvez isso seja positivo se quisermos acreditar mesmo que é o altruísmo que está na base desta aparente abnegação em prol dos mais vulneráveis. Poderá ser alguma, em parte, mas não nos iludamos nem nos façamos heróis quando a principal razão de estarmos em casa é porque temos medo que nos toque a nós ou aos nossos. Não vamos estar aqui a fingir que agora é que nos preocupamos com a vizinha de 80 anos, da qual nem sabemos o nome porque apenas dizíamos bom dia de passagem enquanto acelerávamos o passo para não termos de fazer conversa chata de elevador.
Os únicos heróis aqui são mesmo os médicos, enfermeiros e auxiliares. Dizem que nem todos os heróis usam capa, mas neste caso todos usam máscara, pelo menos enquanto as houver.
São esses os heróis mascarados, os que estão ali na linha da frente a dar o corpo ao vírus e a mente à exaustão, que são aplaudidos agora, mas que daqui a um ou dois anos serão apupados quando decidirem fazer greve para lutar por melhores condições. Se a COVID tem o sintoma da tosse e febre, a HUMANIDADE tem o sintoma da falta de memória e ingratidão e, infelizmente, nunca é assintomática. Essa amnésia mais depressa esquecerá quem está nas caixas de supermercado e todos os outros que continuam a trabalhar para que não falta nada aos outros.
Li que este sentimento estranho que temos todos nesta altura é uma forma de luto antecipado. Que a razão pela qual está a ser complicado para muitos estar em casa sem fazer nada, algo que muitos desejaram no passado, é porque há este sentimento no ar, uma tensão cada vez que vamos à rua ou o telefone toca. Há medo e há luto antecipado porque dificilmente chegaremos ao final do ano sem termos faltado a um funeral porque não pode haver muitas pessoas juntas.
É uma tensão que vai saindo por onde a deixamos. Já me emocionei com os vídeos de cantorias à janela em Itália e Espanha; já me emocionei com as palmas de agradecimento aos profissionais de saúde; já me emocionei com fotografias do desespero dos médicos e enfermeiros; já me escorreram lágrimas, mas consegui contê-las e nem sei bem porquê e para quê. Dei-lhes ordem de isolamento, apenas com saídas para o indispensável. Acho que deve ser porque não quero quebrar já, porque sei que o pior ainda está para vir, quero guardar a tristeza para quando fizer mais sentido, para não ficar já imune ao que aí vem.
Não quero parecer derrotista nem pessimista, prefiro não mentir a mim mesmo. O vírus não vai embora por muito que fiquemos em casa e nenhum país aguenta a sua população toda em quarentena durante mais de um ano até haver vacina. Tudo indica que o vírus se torne parte do nosso dia-à-dia o que significa que depois deste isolamento e distanciamento, os com menor risco vão ter de começar a fazer a sua vida normal e arriscar que não lhes calhe a eles a pequena probabilidade de contraírem sintomas graves. Aos poucos, vamos começar a sair de casa, os bares e discotecas vão reabrir, e vamos fazendo a vida normal enquanto os mais vulneráveis serão aconselhados ou obrigados a ficar em casa para não colapsar o SNS e não morrerem todos de uma vez. O vírus não vai embora, não vai desaparecer nem se vai cansar de nos infectar porque ele não tem vontade própria, apenas é. Ficar em casa é a única coisa que podemos fazer agora e que poderá salvar vidas, mas nunca todas.
Talvez tenha uma visão fria porque não sou de romantismos e acho que isto não é uma lição para sermos menos consumistas e aproveitarmos melhor a vida e o contacto humano. Não, isto não é uma lição para tratarmos melhor o planeta ou sermos veganos ou mudarmos outro hábito qualquer.
Isto não é uma lição porque o vírus não nos quer ensinar nada, só quer fazer aquilo que os vírus fazem, sem pensar nas consequências, algo que nós deveríamos compreender muito bem, já dizia o Agent Smith.
Isto não é uma guerra, porque na guerra o inimigo tem um objectivo. A COVID não tem qualquer objectivo. Na guerra mandam-se os mais novos para morrer, aqui parece ser ao contrário, embora andem muitos desse na rua a pensar que isto é só uma gripe, como se uma gripe não pudesse matar 50 milhões em dois anos. Não é uma guerra porque ainda não vi ninguém a meter-se em jangadas e botes de borracha, arriscando a vida a tentar atravessar o mar para ir para outro país onde as suas hipóteses de sobrevivência sejam mais altas. Chamar a isto guerra será um exagero, mas também poderá ser um eufemismo, só vamos saber depois de fazermos as contas porque a tal gripe espanhola matou mais que a 1ª guerra mundial.
Sim, há pais e mães a passear com crianças no parque quando não o faziam há anos; há poluição humana que parece recuar; há coisas positivas nesta pandemia? Claro que há, tal como quando nos morre um amigo há o lado positivo de termos menos um aniversário para gastar dinheiro. Há sempre coisas positivas em qualquer tragédia, o problema é que infinito-1 dá infinito, segundo me lembro das aulas de análise matemática. À minha formação em engenharia, junta-se a minha hipocondria, o que faz de mim alguém que tem a mania irracional das doenças, mas que se tenta tranquilizar na lógica dos números. O problema é que se por um lado eu fico tranquilo quando vejo que alguém da minha idade e sem nenhuma doença de risco terá pouquíssima probabilidade de morrer com este vírus, por outro começo a pensar que posso ter alguma doença de risco que nunca me foi detectada. Ontem fiquei um bocado cansado a correr, será que tenho insuficiência cardíaca? Ando com o nariz entupido há muitos meses? Terei rinite alérgica? E a dor de cabeça que me dá de vez em quando? Um tumor? É nesse limbo entre a sanidade das estatísticas e o pânico silencioso da hipocondria que tenho vivido, bastante tranquilo, até. É como o meu medo de andar de avião, tem o seu pico até ao avião ligar o motor. Nessa altura, a minha mente descansa porque não há nada que eu possa fazer, ele está no ar e o que tiver de ser será, não no sentido metafísico, claro. Com este vírus já estou na fase de levantar voo, já sei que ele veio para ficar e que o irei contrair, muito provavelmente. Por mim, até seria agora, quando o SNS ainda tem capacidade e para ficar já imune e descontrair. Só não ando aí a lamber interruptores em Santa Maria ou botões de elevadores na Loja do Cidadão porque não quero ser um homicida por ricochete. Se a minha namorada apanha, vai para o lar de idosos onde trabalha e faz um full house e morrem os velhos todos. Ela ganha à comissão por cada velho e nesta altura será muito complicado fazer a reposição de stock. Sim, o príncipe Carlos está infectado e a Camila não, mas aquilo é gente que faz amor sem tocar, manda um empregado fazer por eles e eu não tenho dinheiro para isso.
Quantos de nós não vivem já em isolamento social e quase que ligados a um ventilador metafórico que nos dá apenas o ar necessário para sobreviver? Quantos têm a corda ao pescoço e há anos que não respiram fundo? De repente, idosos isolados em casa já não parece um problema assim tão grande, mas sim um conselho da DGS. Nas zonas mais pobres a vida continua mais igual. As senhoras que vivem na Cova da Moura não se podem dar ao luxo de não ir trabalhar e infelizmente, muitas das pessoas que dispensam as empregadas domésticas nesta altura, não lhes continuam a pagar o salário, mesmo que o seu não tenha sofrido cortes.
Na Cova da Moura tudo deve estar na mesma, com a diferença de que cada um fuma a sua própria ganza, já ninguém gira, e em vez de facas usam lenços com ranho.
Gostava de achar que isto vai mudar e que vamos finalmente exigir responsabilidades aos nossos governantes. Gostava de achar que alguns líderes mundiais vão ser julgados por crimes contra a humanidade por terem acordado tarde e ainda hoje estarem a desvalorizar a pandemia, sem qualquer preocupação com as pessoas pelas quais juraram proteger. Isto é como o terramoto que nos espera mais cedo ou mais tarde em Portugal. Será sempre mais caro reconstruir o país de um sismo devastador estilo 1755 do que tentar prevenir, proteger e melhorar as infraestruturas para que os estragos sejam menores e as vidas perdidas também. Todos os políticos sabem disso, mas empurram com a barriga para que alguém fique com a batata quente mais tarde. Com as pandemias é igual, isto estava mais que anunciado e previsto, houve várias desde a espanhola, esquivamo-nos de outras sem saber muito bem como. O que foi feito desde o surto de gripe suína do H1N1? Quase nada. Investem-se milhares de milhões em bancos e não temos uma reserva de máscaras e luvas e ventiladores para nos defendermos de uma pandemia que sabíamos que viria mais cedo ou mais tarde? Temos de andar em contrarrelógio a comprar a preço inflacionado? É quase criminoso. Por muito que achemos que o governo até agiu a tempo, a verdade é que agir a tempo teria sido agir antes de haver pandemia, há muitos anos e isso ninguém teve coragem de fazer. A culpa é nossa que os elegemos, queremos resultados imediatos, queremos o campeonato já este ano, não estamos dispostos a planear a dez anos, se perdermos no próximo jogo é para despedir o treinador já.
Vamos sair mais unidos disto tudo? Não acredito, o meu cinismo, subproduto do meu idealismo frustrado, não compra essa premissa. Talvez se o vírus fosse de outro planeta e tivesse uma vontade e um propósito assumido de nos aniquilar, talvez aí nos uníssemos na mesma luta.
Vamos virar-nos, pouco a pouco, uns contra os outros. Já nos estamos a virar contra o Rodrigo Guedes de Carvalho que nem há uma semana era elogiado de todos os lados.
Talvez sirva para percebermos que o que interessa é mesmo ter saúde. Talvez sirva para ajustarmos as nossas prioridades e pensarmos onde andamos a investir o dinheiro. Encomendas entregues por drones? Carros que conduzem sozinhos? Robôs que passeiam por Marte? Sondas que vão até ao espaço profundo e que expandem o conhecimento humano? De que serve tanta tecnologia e progresso se depois estamos quase impotentes a um bicho que nem conseguimos ver a olho nu? Tantas invenções para agora nos dizerem "Ora bem, é ficar em casa e lavar as mãos com água e sabão…" É isto que temos para oferecer enquanto humanidade. Temos o mundo nas nossas mãos, à distância de meia dúzia de touches, mas parece que é nas nossas mãos que temos o vírus e que agora convém o mínimo de touches em todas as superfícies. Os smartphones fazem tudo, menos desinfectarem-se sozinhos, talvez tenhamos isso só no próximo iPhone.
Não vai ficar tudo bem, lamento. Para alguns, esperemos que poucos, vai ficar tudo mal porque vão perder entes queridos. Para outros, muitos, ficará a incerteza do que a crise trará, uma dificuldade em respirar não do vírus, mas do nó na garganta do futuro. Muitos vão ficar no desemprego, alguns já estão. Talvez não seja uma crise económica tão profunda e duradoura como a última porque muitos dos países vão estar no mesmo barco e talvez haja mais ajudas e apoios, mas a verdade é que muitos vão perder, de uma só vez, a fonte de rendimento. Haverá sempre os negócios que surgem das crises e as pessoas que se reinventam, mas por cada história de sucesso há 100 de miséria que os bate punhos da vida escondem com a peneira. Os suicídios vão disparar, se não forem alimentados pela crise económica sê-lo-ão pela doença mental que resulta do confinamento e do distanciamento social, do medo e da paranóia. Sinto-me um privilegiado nesse aspecto, apesar de ir perder muito dinheiro com cancelamento de espectáculos, posso continuar a fazer muito do meu trabalho em casa e tenho dinheiro de parte para sobreviver, vantagens de ter um Renault Clio de 2002 em vez de um Porsche. Se tudo correr mal, posso sempre voltar para a informática cujo trabalho dá bem para fazer remotamente em casa, embora entre voltar a programar e ficar no Curry Cabral num ventilador, não sei o que será melhor.
Talvez seja positivo para darmos algum valor às coisas que dávamos como garantidas. Vejo muita gente que dizia que queria morrer e que a vida era uma merda, a lavar as mãos várias vezes ao dia com miúfa de falecer. Talvez isto nos acorde da dormência niilista em que muitos vamos vivendo sem dar conta. Não sei. Está tudo muito esperançado que isto nos mude e transforme a humanidade. Muitos estão com medo do que isso trará e dos cataclismos sempre associados a mudanças forçadas e repentinas. Eu estou no outro espectro: estou com medo que não mude nada e isto seja apenas uma passagem pela casa de partida para mais uma voltinha.
Peço desculpa pelas passagens lamechas que possam fazer lembrar o Pedro Chagas Freitas e o Gustavo Santos ou o Rodrigo Guedes de Carvalho. Prometo continuar a fazer-vos rir, mesmo que seja só aqui, sem receber dinheiro em troca. Depois ajustamos contas quando eu tiver os próximos espectáculos, seja lá isso quando isso for, quando tudo voltar mais ou menos ao normal, as salas de teatro voltarem a funcionar, e vocês tiverem dinheiro para comprar bilhetes. Se tudo correr bem, este será o único texto lamechas que vou fazer sobre este tema. De resto vou continuar a tentar entreter-vos, embora seja de uma arrogância tremenda achar que nesta fase os pequenos risos que vos possa causar conseguirão amenizar tudo isto. Vou fazê-lo também por mim, porque tenho de continuar a fazer a minha vida normal e porque os vossos risos sabem-me tão bem a mim como a vocês. Obrigado por estarem desse lado. Fiquem em casa e pensem que se tudo correr mal, foi melhor do que a maioria das vidas que já viveram desde o início da humanidade. Ficou um ambiente agora também demasiado tétrico, não é preciso, mas é só para puxar para baixo para ficarmos todos deprimidos e depois ser sempre a subir. Se alguém ficar demasiado abatido e se decidir suicidar depois deste texto, não tenho nada a ver com isso, mas sempre é menos uma pessoa para ser infectada e espalhar o vírus. Há sempre um lado positivo. Cuidem-se.