«Eu antes não percebia, mas agora consigo compreender aqueles bêbedos que às vezes via e que não
conseguem andar direitos. O chão parece que está mole! MOLE!»
Apanhar uma bela carraspana sabe bem, faz bem à alma e faz
crescer pêlos no peito. Felizmente, esta última não é verdade – caso
contrário, eu seria uma espécie de José Cid, que, além da frondosa carpete que
apresenta no seu torso, tem sempre ar de quem está bêbedo e visão em túnel. Fernando
Pessoa também dava forte no absinto e é um dos nossos maiores génios. Só a sua
existência é mais do que a prova de que o álcool tem coisas boas. Sim, claro
que há a ocasional cirrose, o inopinado acidente de carro e os súbitos olhos
negros na mulher, mas são sacrifícios necessários. O álcool é a prova de que
tudo depende do contexto e daquilo que a sociedade nos dita. É normal que toda
a gente beba uns copos de vez em quando, ou até todos os fins-de-semana. É
normal beber-se à frente dos pais. É normal, até, que pais incentivem filhos a
experimentar a primeira cerveja ou um copo de vinho. Reminiscências dos rituais
tribais de iniciação da vida adulta que se faziam, e ainda fazem, em algumas
tribos.
Beber álcool e ficar alegre de quando em vez não tem mal nenhum. Agora: ver
miúdos de 14 anos, ou até menos, com a cerveja numa mão e o cigarro na outra
faz-me confusão. Faz-me confusão porque estão a crescer depressa e com pressa a
mais. Porque levar com álcool (e ganza) faz um mal terrível quando o cérebro
ainda não está completamente formado. Faz-me confusão porque, na maioria dos
casos, é por pressão do grupo de amigos e não por vontade própria. Faz-me
confusão porque é sinal claro de que a maioria dos pais se está a cagar para o
que os filhos andam ou não a fazer. No caso das raparigas, ainda é pior, porque
mete violações ao barulho. A única vantagem de haver miúdos desta idade bêbedos
é que, ao menos, não vão pegar no carro. São tão novos que, ao longe, parece
que, em vez de uma garrafa, têm um biberão na mão. Se a garrafa for a única
coisa que levam à boca nessa noite, já não é mau. Uma vez, estava no café, e,
na mesa ao lado, umas miúdas conversavam. Uma, que não devia ter mais de 15
anos, disse às amigas, com orgulho: «Ontem, fiz um broche no Urban.» Classe!
Estou a ser injusto. Estava um bocado de barulho, posso ter
ouvido mal e ela pode é ter dito que fez um broche ao Urbano.
Eu comecei a beber tarde para o que é normal, mas na altura correcta, na minha
opinião. Devia ter uns 19 anos quando apanhei a minha primeira bebedeira. Foi
das grandes. Não comecei a beber para me integrar ou para me enturmar num
grupo, para parecer crescido ou fazer parte dos fixes. Bebi porque quis
experimentar, e gostei da sensação e do facto de mascarar a minha timidez, que
ainda era mais evidente quando era mais novo. Bebo uns copos de vez em quando,
mas é muito raro ficar mesmo bêbedo. Aliás, nunca fiquei naquele estado de não
conseguir andar. E porque é que bebo? Porque estar bêbedo é giro, pelo menos
ali naquele limbo entre o sóbrio e o coma. Há pessoas que perguntam se não nos
conseguimos divertir sóbrios, e a resposta é: claro que conseguimos. Mas
divertimo-nos mais com álcool.
O álcool é o lubrificante social e, para os mais ariscos, que gostam de
brincadeiras com champanhe, também pode lubrificar o resto, embora eu aconselhe
uma bebida mais espessa, mas nunca licor de café! É castanho. Quando somos
pequenos, basta chegar ao pé de outra criança na rua, na escola ou no parque e
perguntar se quer ser nossa amiga. A cumplicidade e as afinidades são logo de
quem sempre se conheceu. Quando se cresce isso já não acontece,
principalmente porque, se fores a um parque tentar ser amigo de uma criança,
vais preso. Em adultos, tornamo-nos mais autoconscientes, críticos e mais
preocupados com o que os outros pensam de nós. O álcool é o elixir da juventude
psicológica e momentânea que vem colmatar esta falha do nosso cérebro. Sem
álcool, os feios e as feias nunca se safavam com gajos e gajas acima das suas possibilidades.
O álcool é a operação plástica efémera, a maquilhagem virtual, a realidade
aumentada que disfarça os defeitos e acentua a libido. O álcool mata, mas
aumenta a natalidade, por norma, de filhos indesejados. O álcool é o comburente
da propagação das doenças venéreas, mas ajuda a curar as feridas psicológicas,
ou acentua-as. O álcool liberta o espírito, mas prende o corpo se fores a
conduzir e matares alguém. O álcool é psicólogo, cardiologista e
oftalmologista. O álcool engorda, mas faz-te dançar, pular e vomitar. O álcool
é o escape da vida de excessos que todos levamos. O excesso não é o álcool, mas
sim o que nos leva a precisar dele para descontrair da semana.
Alguém disse que embriagarmo-nos é pedir felicidade
emprestada ao amanhã. Eu devo estar com juros altíssimos, que as minhas
ressacas já duram dois dias.
Há uns meses, ia a sair do Urban e encontrámos uma rapariga
moribunda sentada no passeio. Fomos comer e reparámos que ela estava ali a
tentar endireitar a cabeça, como qualquer bebé de seis meses tenta. Não tinha
seis meses, mas não devia ter mais de 16 anos. De top reduzido, a mostrar a
barriga, e decote até ao piercing do umbigo, ali estava ela, sozinha,
desamparada e a passar um mau bocado. Fomos lá tentar falar com ela, perceber se
estava em condições. Ela respondeu-nos: «Mhhrararsgçlk, plinfans
obralihasd!». Não tinha ar de estrangeira, por isso percebemos que estava
realmente mais baça do que as pedras da calçada, contra as quais lutava, para
não encostar a cabeça. Ficámos lá um pouco a tentar falar com ela e percebemos
que estava com amigas que tinham ficado lá dentro. Boas amigas, que deixam uma
das suas vir cá para fora sozinha, mais bêbeda do que o José Carlos Pereira.
Vomitou, tentou levantar-se, desequilibrou-se e, se não fôssemos nós a
agarrá-la, tinha ido parar ao rio e, a não ser que tivesse um soutien
insuflável, tinha-se afogado. Era óbvio que tínhamos de fazer algo. Tirámos-lhe
o telemóvel da mão e decidimos ligar a alguém. Havia um contacto que parecia
ser o namorado «Brunuh kiduxo», mas podia também ser o amigo gay. Não querendo
estragar uma relação, já que ela podia ter dito ao namorado que estava em casa
a estudar o livro da catequese, decidimos ligar ao pai. Atendeu um senhor.
Dissemos o que se passava, que estava tudo bem, mas que a filha não estava em
condições para apanhar um táxi sozinha. Ele disse que a iria buscar. Já lá
estávamos quase há uma hora e esperámos mais uns bons vinte minutos, ao pé
dela, que já dormia com a cabeça no colo da minha namorada.
Nunca foi assim que imaginei ver uma rapariga no colo dela,
ainda para mais menor e acabada de vomitar três vezes. Tudo pouco sexy.
O pai chegou entretanto, no seu Mercedes topo de gama. De cara sisuda, escoltou-a até ao carro, agradeceu-nos com um «obrigado» envergonhado, e foram-se embora. Não percebemos se era um pai extremamente calmo, se era a falta de surpresa, por já ser hábito, ou se estava a guardar as energias para a surra de cinto que lhe haveria de dar quando lhe passasse a bebedeira. Espero que tenha sido a última. Fomo-nos embora, quais anjos da guarda, sabendo que ela se iria lembrar de nós, até porque usámos o telemóvel dela para tirar umas selfies em grupo com ela quase em coma. Ainda tivemos o requinte de malvadez de adicionar o contacto de um de nós, não eu, com a foto dele, com cara de azambuado e o nome: «O gajo que ontem te salvou.»
Ela nunca disse nada. Mal-agradecida.
Por isso, criançada que me esteja a ler, já sabem: bebam com moderação e,
quando abusarem, pelo menos rodeiem-se de amigos como deve ser. Não dão ouvidos
aos vossos pais e iam dar-me a mim? Claro que não. Desgracem-se para aí à
vontade.
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