31 de agosto de 2015

10 tipos de pessoa que comentam na Internet



Se há coisa que me aquece a alma é ler as alarvidades que vagueiam pelas caixas de comentários na Internet. Seja no Facebook, nos sites de notícias ou em qualquer forum do ciberespaço
 visitado por muitas de pessoas que têm sexo pouco satisfatório. Há muitas vezes em que me vem ao imaginário uma sala de convívio, num manicómio, com acesso à Internet em que se diz aos doentes «Têm meia hora para deixar a loucura rolar!». Estou a ser injusto, essas pessoas têm a desculpa da patologia mental e da última vez que vi, a estupidez ainda não é considerada doença. Gosto de observar, desiludir-me um bocadinho com a Humanidade, chorar e depois ver que afinal mais vale rir. Como tal, aqui ficam os tipos de comentadores que identifiquei ao longo de vários anos de estudo de campo.

O SALAZAR
«A culpa é dos pretos, dos ciganos e dos estrangeiros! E o que não é culpa desses só pode ser dos paneleiros!». Parece um slogan do PNR (lá estou eu a dar ideias...) mas é um comentário que se vê em demasia nas páginas dos jornais online. Basta ver uma notícia sobre o casamento gay para perceber que há muita gente em Portugal cujo cérebro não funciona deste 1974. Por muito triste que seja, este tipo de mentalidade ainda abunda em Portugal e brota à superfície com o anonimato da Internet. Claro que também acontece na vida real, especialmente em algumas viagens de táxi. O que mais me assusta é que não é uma ou duas pessoas a cuspir racismo, homofobia e preconceito no geral, são vários. Às vezes são a maioria! Ideia: todos os ratos tinham um sistema de electrocussão e associado a cada comentário no Facebook havia o botão "Zap". Esta gente só lá vai com técnicas à Pavlov.

O CASANOVA
Este é aquele tipo de gajo que comenta nas páginas das celebridades ou de pitas "famosas" com milhares de seguidores devido ao enorme talento de colocar fotos em fio dental e decotes com citações brasileiras ao género «A melhor curva de uma mulher é o seu sorriso». Basta ir a uma página de uma qualquer actriz da nossa praça para ver vários comentários à lá Casanova, tais como: «Oi linda!», «Curtia de te conhecer-te a ti!» e «Escalavrava-te essa peida toda que até arrotavas a alheira de Mirandela guarnecida com ovo, batatas fritas e salada de tomate à parte!». Cada um é romântico à sua maneira e utiliza as técnicas que quer no tocante à sedução. Aposto que comentam sempre a uma só mão e com as calças a fazer de torniquete nos tornozelos. Quando é que esta técnica deu resultado? Nunca! Parem com isso. Mandem mensagem privada e nunca usem a palavra «Nina» se não o mIRC liga-vos de 1997 a pedir as suas abreviaturas de volta.

A VIRGEM OFENDIDA
Este é um dos tipos de comentadores virtuais mais comuns. São os cavaleiros brancos da moralidade que comentam a qualquer oportunidade com «Com coisas sérias não se brinca!», sempre que se faz humor com as suas crenças. Por norma, são pessoas que ficam mais ofendidas com uma piada do que com fotografias paparazzi, numa revista cor-de-rosa, à saída do funeral do pai de uma figura pública com zoom nas lágrimas. Só o humor é que tem limites e são eles que os impõem! São pessoas que partilham fotografias de crianças africanas a morrer à fome e acham que fizeram a sua quota parte para um mundo melhor. Também há outro tipo de virgens ofendidas, que são aquelas pessoas que têm como foto de perfil a imagem "Je Suis Charlie" e que acham que a liberdade de expressão é uma coisa bonita mas só até lhes fazer comichão no rabo. Pode-se gozar com tudo o que não lhes toca a eles. Pode-se gozar com os 250 deuses em que eles não crêem, e com os milhares de clubes de futebol que eles não apoiam. Mas quando se lhes pisa as ervas daninhas do jardim, está o caldo entornado. O termo virgem ofendida não é ao acaso, é porque a maioria destas pessoas é virgem, ou pior... mal fodida.

O KKK
Tal como no mundo real, também na Internet há pessoas com um riso peculiar. Sabem aquela senhora de meia-idade que no restaurante mete toda a gente a olhar com o seu riso de javali que pisou pioneses? É uma guinchadeira mais estridente do que o Nuno Guerreiro a ser pedido em casamento. Na Internet estas pessoas identificam-se através dos comentários em que expressam as suas convulsões sob a forma de um «kkkkkkkkkkkkkk», um «kakakakaka» e ainda o famoso «rsrsrsrsrsrs». O primeiro é uma espécie de invocação dos espíritos dos criadores do Ku Klux Klan; o segundo é uma onomatopeia de quem é fetichista por galinhas; e o terceiro, é de quem se está a rir com a boca cheia. Quando vejo a última imagino sempre um velho a puxar uma escarreta das profundezas do seu ser que até chega a causar hemorragias internas. Ao contrário dos restantes, este tipo de comentador online tem a minha simpatia. Primeiro porque cada um ri como quer e depois porque também eu escrevo «LOL» enquanto nem um sorriso estou a esboçar.

O CAPS LOCKED
Um dos meus favoritos é o tipo de pessoa que escreve SEMPRE ASSIM, PARA MOSTRAR QUE ESTÁ MESMO IRRITADO COM O MUNDO!!!!!!!!!!!!!!!!!! ESTÃO A VER DE QUEM ESTOU A FALAR!!!!!!!!!!!??????????? O seu português nunca é o melhor, há sempre palavras cortadas e comidas e a única pontuação que utiliza são os pontos de exclamação, cuja tecla já deve estar mais carcomida do que o seu cérebro. Dá vontade de lhes aparecer em casa enquanto eles estão a dormir e acordá-los com um megafone ao ouvido a cantar a música "Tá Turbinada" da Ana Malhoa. Nunca ouviram dizer que quando se começa a gritar se perde a razão? Na Internet é igual, quando vejo um comentário destes parto automaticamente do principio que o QI (ou qi) da pessoa é menor do que o número do seu calçado. 

O TIO ALFREDO
Este tipo de comentador é aquele senhor na crise da meia-idade: foto de perfil com óculos escuros e uma t-shirt com padrões tingidos. A foto foi tirada no quarto à media luz, com a webcam do portátil. Confere-lhe, automaticamente, ar de pedófilo em final de carreira. É comentador assíduo nas publicações do Correio da Manhã que têm como foto de capa raparigas de fio dental, mesmo que a notícia seja sobre um incêndio que matou uma idosa paraplégica e um cão, e que desalojou três esquilos amestrados com Síndrome de Down. O tio Alfredo faz sempre comentários inadequados, muitas vezes em fotografias de raparigas menores de idade. Tenta ser eloquente mas acaba por ser ainda mais assustador «Uma delícia...», «Ai, se eu tivesse 80 anos a menos...» e «No meu tempo as miúdas de 13 anos não me davam-me vontade de fuder! O progresso é lindo...». Sim, o tio Alfredo utiliza muitas reticências a pensar que lhe conferem um ar misterioso, sem saber que só tornam os seus comentários ainda mais sinistros.

A EDITE ESTRELA
Um dos meus tipos favoritos. Nada melhor do que ver que o bom português é tão valorizado pelas pessoas que frequentam as caixas de comentários na Internet. Nada melhor do que ver pessoas a opinar num texto grande, sobre temas importantes para a sociedade e sobre os quais se pede reflexão, apenas com o seguinte: «Falta uma vírgula.». Quando não se tem opinião, mais vale estar calado. Se querem corrigir o português, façam-no educadamente, mais vale dizer «Gostei do texto e partilho da opinião e já agora falta uma vírgula!» ou «Detestei o texto e discordo de tudo e já agora falta uma vírgula!». Encarem a Internet como a vida real, se vissem alguém na mesa do café ao lado a dar um erro de português assim sem um bom dia nem boa tarde? Não. É uma questão de cortesia. Nem estou a falar de mim, estão à vontade em corrigir-me que eu agradeço. Estou mais a falar em notícias importantes como «Morreram mais 200 migrantes em naufragio» e há sempre uns palermas que vão lá escrever «Naufragio?! Sem acento?! Chamam a isto jornalismo?! É por estas e por outras que o país está como está!» e depois disto, como bons grammar nazis, fazem uma referência à falta que um Salazar faz a Portugal.

O JORGE JESUS
Este tipo de comentador é o oposto do anterior. É aquele que parece que só fez a 1ª classe numa escola improvisada num vão de escadas no Intendente. São autênticos Ted Bundy da língua portuguesa tal é a série de homicídios gramaticais que cometem. Não sabem conjugar o verbo haver e cometem erros imperdoáveis como «Tivesse-mos», «Voçê» e o famoso «Fizes-tes». A culpa não é deles, é dos professores que tiveram que não lhes deram com reguadas nos nós dos dedos ao ver estas calinadas. Quando se queixarem que o vosso trabalho é difícil, pensem que podiam ser o corrector ortográfico desta gente. O melhor dos dois mundos é quando há uma espécie de híbrido, Jorge Estrela ou Edite Jesus, e alguém faz uma correcção a erros insignificantes e que se vê que foram desleixo e não iliteracia, com uma frase, toda ela carregada de erros piores. Já fui corrigido assim: "O texto que escreves-te está xeio de erros! És mesmo um palhasso!".

O HERÓI DO TECLADO
O famoso keyboard warrior que acha que a Internet é toda ela um jogo de World of Warcraft e que a cada comentário a demonstrar força está mais perto de chegar a paladino fucking shit. Oferece porrada por tudo e por nada ao género «Vamos lá fora resolver isto!», pavoneando a sua testosterona virtual por todo o lado. Vê-se muito em sites desportivos e em notícias sobre tourada o que não é de estranhar. Quem gosta de ver o sofrimento de um animal no conforto da bancada, só pode ser o tipo de pessoa cobarde que ameaça outros através da segurança do ecrã. A magia acontece quando ao herói do teclado se juntam as características do Jorge Jesus e do Caps-Locked, num autêntico espectáculo de fogo de artifício machão de pólvora seca. Era aparecer-lhes à porta de casa com um grupo de ex-presidiários e confrontá-los com um abraço apertado e por trás. O amor vence tudo.

O TROLL
O troll é uma compilação de vários tipos. O objectivo do troll é ter atenção, já que em casa ninguém lhe liga. Normalmente são homens, com borbulhas na cara e pila pequena: daí a sua falta de confiança que os leva a descarregar no local onde conseguem que é a Internet. Na vida real são uns xoninhas que dizem que sim a tudo, que seguem a carneirada sem contestar nada e que levam duas chapadas na tromba sempre que há confusão. O troll segue várias páginas no Facebook, inclusivamente com as notificações activas, para poder ser sempre o primeiro a comentar e a dizer mal. Lá no fundo ele até gosta, mas tal como alguns terroristas que adoram os prazeres dos países ocidentais, sente-se mal com isso. Há quem diga que nunca se deve discutir com um troll porque são invencíveis, dado que nos rebaixam à sua estupidez e nos vencem por experiência. É mentira, os trolls são como aqueles gajos do ginásio que são grandes e que nunca levaram um selo bem dado porque toda a gente preferiu fugir do que confrontá-los. Com uma resposta à séria e mais troll do que eles, eles fogem e escondem-se na cave dos pais, ou seja, no seu quarto.


O George Carlin dizia que o mundo era um circo de aberrações e que viver nos Estados Unidos era ter um bilhete para a fila da frente. Eu acrescento que ter acesso à Internet é ter acesso à tribuna VIP e ao backstage desse circo.

PS: Se por acaso quem estiver a ler isto foi algum destes tipos, já sabem, não se armem em virgens ofendidas.
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28 de agosto de 2015

Aventura em Marrocos (4/4): Moulay Bousselham



Para quem não leu, pode ser ver as partes que antecedem este texto.
A aventura por terras marroquinas estava a chegar ao fim. Restava-nos uma última paragem, onde iríamos estar duas noites: Moulay Bousselham, uma aldeia piscatória já perto da fronteira. Saímos cedo de Meknès e esperava-nos uma viagem de apenas três horas. Queríamos chegar cedo ao nosso último destino para aproveitar bem a piscina e a praia e conseguirmos descansar e relaxar depois de uma viagem tão cansativa. Chegámos ao hotel sem qualquer percalço, ao contrário do que havia sempre acontecido nas cidades anteriores. Fizemos o check-in e fomos directos à piscina dar uma mergulho e apreciar a vista paradisíaca para a praia. Bastava abrirmos uma porta e tínhamos os pés na areia. Na areia e em sacos de plástico e outro tipo de material não biodegradável. Fui dar um mergulho no mar que estava impecável e tentei ver onde andavam as gajas boas, aproveitando que a minha namorada tinha ficado na piscina do hotel. Depois é que percebi o porquê de ela não se ter importado que eu fosse sozinho: gajas boas, nem vê-las. Só havia mulheres tapadas do pescoço aos pés, fosse na areia a apanhar banhos de sol ou mesmo na água. Talvez um bom negócio para aqueles lados seja fazer túnicas e burkas em material dos fatos de banho ou de surf. Ou umas túnicas com um salva-vidas embutido, em que bastaria puxar um cordel para aquilo insuflar. Sabendo que os marroquinos têm excelente olho para o negócio, acredito que seja só uma questão de tempo até aparecer uma ideia destas no Arab Tank.

Depois de algumas horas a trabalhar para o bronze, fomos jantar fora a um restaurante aleatório no centro da aldeia. Pedimos para ir para o terraço, parecendo-nos que teria uma excelente vista para o pôr-do-sol. 


Ao chegarmos lá acima, vemos o que parecia ser a esplanada do AquaParque depois de vinte anos de abandono e exposição às intempéries.

Cadeiras e mesas de plástico todas pretas e partidas, mas com uns chapéuzinhos de palha a enfeitar. Demos meia volta e descemos. Nisto, vem uma senhora ter connosco, a perguntar o que íamos comer. Falou-nos em francês, língua que nenhum de nós sabe falar sem ser à imigrante que está em França há apenas uma semana. Ela, prestável, disse que o filho falava inglês e que podia traduzir. Nesso momento, percebemos que ela não trabalhava no restaurante! Queria colar-se ao nosso jantar em troca de serviços de intérprete dos quais não precisávamos. Quando a senhora vai à janela gritar a chamar o filho, «Muhammad Miguel», que estava do outro lado da estrada, nós efectuámos uma manobra evasiva de fazer inveja a um espião da CIA, a um ninja do Japão antigo, ou a um gajo que engravidou uma rapariga depois de uma noite no Urban. Fomos sentar-nos lá fora a um canto e nunca mais vimos a senhora. Finalmente, ao fim de vários dias em Marrocos, já estávamos a aprender com eles. A toalha de mesa pegava-se aos nossos braços e havia teias de aranha em todo o lado. Veio o empregado, extremamente simpático, de perfil magrinho e cenas pretas nos dentes que claramente não eram tinta de choco. Só falava francês mas lá nos desenrascámos apontando para o menu. Só não tínhamos a certeza do que significava «viande» e quisemos confirmar que não era borrego. Ninguém se lembrava da tradução de «vaca» para francês. Eu ainda tentei com um «Vaquê», «Vacoir» e um «Fanny», mas nada. Então, eu e a minha namorada dissemos em uníssono "Muuuhhhhhhh?" e ele riu-se e disse que sim. Foi um fartote de rir até eu depois descobrir que afinal «viande» quer dizer carnes vermelhas no geral e não apenas vaca. Resultado? As espetadas eram de borrego... O prato estava todo bem arranjado e bem servido, com a carne e os acompanhamentos deitados sobre uma cama de dois quilogramas de ramos de salsa que cobriam todo o prato, o que acabava por servir como barreira protectora contra a sujidade da loiça que estava patente nos copos e talheres com que nos presentearam. As primeiras garfadas até nos souberam bem, com a carne carregada de cominhos e tempero para disfarçar o bedum natural do borrego. No entanto, entre um e outro pedaço, foi-se instalando em nós um enjoo. Talvez fosse a carne, talvez todo o ambiente do restaurante que, apesar da vista, não era agradável.

Enquanto nos íamos queixando de tudo, uma miúda pequena vem ter à nossa mesa e começa a pedir cenas na língua dela. Pensámos que fosse dinheiro e continuámos a comer e a ignorá-la. Ela insistiu. A minha namorada começou a pensar que talvez fosse comida o que ela queria e deu-lhe uma pedaço de pão. A miúda olhou para o pão com desdém de como quem é pobre e mal-agradecida, mas depois percebemos que queria carne para o pão! Demos-lhe duas fatias com carne lá dentro e ela foi toda contente ter com a mãe que a esperava sentada num muro em frente ao restaurante. Deu uma dentada na comida e vomitou-se toda com o nojo daquela carne.


Mentira! Comeu e lambeu os dedos. Quem tem fome a sério não liga se o tempero está q.b. e se a massa está al dente.

Tal como havia acontecido com as crianças a pedir dinheiro em Meknès, foi um momento triste, mas, infelizmente, vamos ganhando carapaça e ficando insensíveis a estas situações. Pedimos a conta e o senhor vem todo sorridente com ela, feita à mão, pousada num pratinho com chocolates e rebuçados. O valor era astronómico, cerca de 55€ e eu, já resignado de tantas vezes que me tentaram enganar em Marrocos, nem ia ver, pois pensava que fossem taxas de serviço e o chá supostamente oferecido e que não iríamos conseguir não pagar sem armar confusão. Eu costumo confirmar sempre a conta e nunca deixo passar uma única azeitoninha que não tenha comigo, mas foi a Xana que insistiu desta vez. Lá abri o papel e vi que algo estava errado de mais. Havia números que não se percebiam bem e o total não fazia sentido. Passei ao André para ele ver e chegámos à conclusão que nos estavam a cobrar 5€ pelo serviço e 10€ por cada prato, sendo que na lista vinham marcados como 5€. Estavam a tentar mamar-nos 25€ à força! Olha-me estes aldrabões! Chamámos o senhor e ele disse que estava certo. O André refilou a dizer que os pratos não eram 100 dirhams mas sim 55 e o senhor ainda insistiu que estava certo e que eram 100 (não havia nada a 100 dirhams na carta). Pediu-se o menu para confirmar e viu-se o olhar de "Estou fodido..." nos olhos do empregado. Tentou não trazer mas voltámos a insistir. Foi lá dentro, apressado, demorou cinco minutos, durante os quais vimos o que pareciam ser os donos do restaurante a espreitar cá fora e observar-nos. Depois, o empregado vem todo sorridente a dizer que afinal tínhamos razão. Se fosse no primeiro dia em Marrocos, se calhar tinham nos encavado, agora assim, depois de uma semana, já nós estávamos peritos em detectar este tipo de aldrabice.

Fomos até à praça central onde decorria o festival das praias de Marrocos. Tínhamos visto, cerca de cinco horas antes, pessoas já junto às grandes do palco para ficar na fila da frente. O artista da noite devia ser o Tony Carreira marroquino. Ficámos ali uma meia hora a ouvir a música, a ver as pessoas a dançar, a bater palmas e a segurar cadeiras acima da cabeça como modo de celebração. Para meu desalento, não houve mulheres todas malucas a atirar as burkas para o palco. A praça estava cheia e cheirava a frutos secos torrados, possivelmente com pregos lá dentro. Abstivémo-nos de dançar já que a nossa dança ocidental podia ser mal interpretada. Era para fazer um twerkzito, mas não quis causar ataques cardíacos ao mulherio. Vimos o que tínhamos a ver e fomos para o hotel jogar às cartas e beber o vinho que reabastecemos no Carrefour, o único local que encontrámos a vender álcool. Cinco euros a garrafa, embrulha e vai buscar, e era o mais barato que havia. Ficámos a jogar até tarde e como se estivéssemos em casa, mas no terraço. Sei que fizemos barulho a mais porque um estrangeiro de um dos quartos veio cá acima em tronco nu e cara toda remelosa mesmo quando íamos a descer as escadas para irmos dormir. Olhou para nós sem dizer nada e voltou para o quarto. No dia seguinte, parecia meio chateado com a namorada, o que me leva a crer que ela esteve a noite toda a melgar-lhe a cabeça para nos ir mandar fazer pouco barulho e que, finalmente, quando ele teve deixou de ser xoninhas e ganhou coragem já não serviu de nada.

O dia seguinte foi de relaxamento, passado na piscina para ganhar uma corzinha e para não pensarem que as fotos que tirei eram todas do Martim Moniz. Havia alguma má disposição e enjoo, e alguns de nós já estavam com o intestino a mostrar fraqueza e soltura. Deve ter sido a carne do dia anterior que fez mossa. O que vale à miúda a quem demos a carne é que ela andava a vender pacotes de lenços na rua. É por estas e por outras que eu não gosto de dar nada a ninguém. Jantámos no hotel, couscous que a dona diziam ser muito bons, isto depois de nós lhe termos dito que até agora não éramos fãs da comida marroquina. Não estavam maus, embora para o preço não estivessem nada bons. O André deixou quase tudo no prato, dizendo: «Couscous Royal? Para que é que se põem a dar nomes maricas à comida? Porque é que não dizem que isto é couscous com cozido à portuguesa mas sem os enchidos e as carnes boas? Couscous Royal é o caralho!». Teve razão.

No manhã seguinte arrancámos por volta das dez, para termos tempo de apanhar o barco que era às 13.30h. Ao chegarmos ao porto disseram-nos que afinal o barco era só as 16.00h. Esperámos ali na fila durante umas horas e lá entrámos. A viagem foi curta e depois de esperarmos bastante tempo para sair do barco, lá pisámos terra europeia. Passámos por vários postos de controlo, numa fila de uma lentidão a fazer lembrar Portugal e as suas repartições das finanças. Veio um cão cheirar-nos as rodas do carro e claro que não encontrou nada. O polícia a quem mostrámos os passaportes era português! Ficou todo contente:

- Não se vê por aqui muitos portugueses! Fizeram boa viagem?
- Fizemos sim senhor.
- Então e estes passaportes são falsificados ou quê?
- Todos verdadeiros e novinhos.
- Sim senhor, e não têm nada que vos comprometa?
- Tenho uma túnica um bocadinho gay...
- ... e droga? Não há aí droga nessa mochila? Olhem que depois a guarda civil ainda vos vai revistar. - brincou ele.
- Nada disso, eu sou da Buraca... Acha que preciso de trazer droga de Marrocos?
- Está bem visto sim senhor. Vá, boa viagem e obrigado por este bocadinho em que pude treinar o português.

Passámos os pontos de controlo todos e fomos direitos a Sevilha, para jantarmos num restaurante que eu conhecia e que é do caraças. Jantámos divinamente, várias tapas e comidas boas, que nos souberam ainda melhor depois de tantos dias a comer mal e porcamente. Pagámos 15€ cada um, uma pechincha em pleno centro sevilhano e no 1º Mundo. Não nos assaltaram o carro, o que em Sevilha também foi de estranhar. A recta final até Lisboa estava à nossa espera e fizémo-la de seguida, chegando às três da manhã à bela localidade da Buraca.

Foi uma experiência inesquecível esta minha primeira saída do velho continente. Marrocos é um país que vale a pena visitar, mais do que uma vez. Gostava de voltar a algumas das cidades e conhecer outras. Para não falar de que tenho que ir passar uma noite no deserto, que foi uma das grandes falhas desta viagem. É um país pobre, com miséria e lixo nas ruas, mas tem um povo que apesar de se ver obrigado a utilizar algumas técnicas de aldrabice, prefere fazer isso do que assaltar os turistas. Qualquer outro país pobre teria muito mais violência e insegurança! Aqui não e não acredito que seja só devido às leis duras que penalizam quem interfere com o turismo. Acredito que seja porque é realmente um povo bom, se esquecermos a parte de que muitos obrigam as mulheres a andar tapadas e as tratam como seres inferiores. São sinais do atraso devido ao tempo que passa mais devagar quando a religião está tão presente. Um dia, acredito que melhore. No fundo, Marrocos e Portugal não são assim tão diferentes: gostamos de enganar os turistas; os transportes estão sempre atrasados; e conduzimos sem qualquer tipo de civismo. Seja como for, vale a pena. Vão lá que não se vão arrepender e sai mais caro ir ao Allgarve.





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27 de agosto de 2015

Aventura em Marrocos (3/4): Meknès



A epopeia marroquina continua, depois das cidades de Chefchaouen e Marraquexe, a próxima paragem seria Meknès, a capital Berbere. Não investigámos muito sobre esta cidade, foi mais por posicionamento geográfico e porque nos disseram que ir a Fez era complicado e pouco seguro. A viagem desde Marraquexe foi tranquila, cerca de 500 quilómetros mas todos em autoestrada. Como já falei nas duas primeiras partes, o trânsito em Marrocos é um caos. Parece que todos os condutores estão aflitos para ir ao WC e que tiraram a carta na Lusófona, por equivalência à de burro. Estou a brincar, eles nem parecem ter carta. Seria de esperar, por isso, que na autoestrada fosse igual e que andassem todos a acelerar como se o amanhã não fosse chegar, mas não. Foram muitos raros os carros que vimos a mais do limite de velocidade. Obviamente, que tal não acontece por respeito e civismo, mas por medo dos radares da polícia que eram mais do que muitos. Parar na berma é outra história. Qualquer carro pára e sem se encostar muito, não vá o raile lateral riscar o carro todo amolgado. Param ali com duas rodas na berma e as outras duas no meio da estrada e quem quiser que se desvie, que isto é uma terra em que é cada um por si e Alá sabe de todos. Vimos, inclusivamente, um senhor com um camião parado dessa forma a rezar com um tapete em frente ao veículo. Quando a vontade, ou as amarras da religião, apertam, é parar e fazer o serviço sujo, seja onde for.

Lá chegámos a Meknès, a meio da tarde, e desde logo vimos que era uma cidade diferente. Parecia mais pobre, com mais pedintes a cada semáforo e rotunda desorganizada. Havia azáfama na rua, uma praça grande com tendas montadas e música a tocar. Turistas não vislumbrámos nenhum e sentimos mais aqui do que em qualquer outra cidade, que as pessoas nos olhavam. Não de lado, nem de qualquer forma estranha. Apenas olhavam a diferença que por ali passava. Estacionámos, mais uma vez num parque de terra batida improvisado e fomos com as malas, fintando vários guias que nos queriam levar a ver a cidade, mesmo com os nossos pertences aos ombros. Subimos uma estrada e atravessámos a praça central a pé.

Sem querer, dei um encontrão a uma senhora e ela fitou-me intensamente através da sua burka. Não percebi se me estava a rogar pragas ou a fazer olhinhos sedutores.

Chegámos ao riad, onde fomos recebidos por um senhor simpático ofereceu um chá de menta e nos falou um pouco sobre a história da cidade, do edifício que agora hospedava turistas e que havia sido uma casa de uma família de um senhor com quatro mulheres e vinte e sete filhos. Se eu morasse ali também teria quatro mulheres porque a casa era grande e uma pessoa não chegava para a limpar. Não querendo estereotipar, o senhor tinha uns certos tiques e maneirismos de quem não come porco por questões religiosas, mas que gosta de um bom salpicão à martelada. Pensei que deve ser tramado ser gay naquele país, ter que o esconder e ter uma vida dupla a vida inteira. Nos países como Marrocos, o armário está fechado por fora a sete chaves. Claro que deve ter as suas vantagens, pois ao menos já sabem mais ou menos com o que contam na hora do sexo, já os hetero nunca sabem o que está por baixo daquelas burkas. Se calhar a desilusão não é tão grande como nos países ocidentais depois de tirarem a maquilhagem, os soutiens almofadados e as calças push-up coladinhas ao pacote.

Subimos ao quarto e fomos ao terraço ver a vista. O sol já estava baixo e iluminava os telhados brancos das casas degradadas que se amontoavam até à linha do horizonte. Visto dali parecia uma favela com algum carisma que dava vontade de explorar. Tomei banho e enquanto os restantes ainda se arranjavam, fui lá abaixo perguntar algumas informações ao senhor da recepção: sítios a visitar, restaurantes e essas banalidades turísticas. Perguntei-lhe, também, se era seguro andar ali à noite e ele disse que sim, «Safe. No dangerous. No problem» assegurou-me. Vim até à porta do riad fumar um cigarro e observar as pessoas que passavam sem tanta pressa como nas outras cidades. Fui logo abordado por um senhor de meia idade, que me perguntou se já tinha ido à sauna. Disse que não e ele insistiu para que eu fosse no dia seguinte, que era mesmo em frente e valia o dinheiro. Devia ser o negócio da prima, como sempre. Nisto, vejo o senhor do riad a vir também à porta escutar a conversa e, ao perceber isso, o senhor com fetiche de sauna foi-se logo embora. O outro chamou-me para dentro e disse:

- Don't talk to him. Dangerous people.
- You said no danger when I asked you...
- Yes, but they ask you if you want to smoke drugs. A lot of people like him. No good people. Dangerous.

Não fiquei muito descansado mas relativizei e calculei que o único perigo fosse se algum de nós decidisse ir com ele para algum beco com o intuito de querer comprar um recuerdo de THC. Ainda assim deveria ser menos perigoso do que comprar comida de rua, mas já lá vamos.

Fomos jantar a um dos restaurantes da praça central, que servia grelhados no carvão, já que de tajines e couscous já estávamos todos nauseados. Pedimos uma espécie de grelhada mista com várias carnes e batata frita. O senhor traz a comida e um pratinho com ketchup com o dedão grande lá mergulhado. Toda a gente sabe que roer as unhas com ketchup é muito mais saboroso. Nem liguei. Havia espetadinhas de frango que estavam razoáveis já que frango não dá para estragar muito. Havia almôndegas de uma carne que parecia ser borrego e que também estavam aceitáveis e depois havia o ex libris do prato. A salsicha no topo do bolo. Salsicha de borrego, meus amigos. Meti uma à boca, salvo seja, com um entusiasmo de quem estava com saudades de enchidos, mas num sentido diferente das do senhor do riad. Quando começo a mastigar só não me vomitei porque sou um gajo rijo. Nojo. Ninguém comeu a não ser o André que no meio do pão, alface, batata frita e ketchup dizia que conseguia disfarçar o sabor. Nem as dezenas de gatos pequenos e esfomeados que povoavam a cidade e estavam junto às mesas do restaurante, à espera de que alguém lhes desse comida, gostaram daquilo. Os gatos também são uns esquisitinhos da merda, diga-se, mas gostaram de todas as outras carnes menos da salsicha. Ao menos ficámos descansados porque tivemos quase a certeza de que não eram de ratazana.

Fomos dar uma volta pelas ruas da medina cujas lojas já estavam todas a fechar mostrando que a cidade não tinha a energia de Marraquexe. Voltámos à praça, que parecia toda ela uma Feira da Ladra mas em pior. Havia de tudo. Parecia que estavam ali todos os vendedores de bujigangas do Bairro Alto que se aproveitam do álcool no sangue da juventude para vender óculos, chapéus do SWAG e anéis com luzinhas que só funcionam dois segundos e meio. Optámos por descer a rua e fomos dar uma zona onde se vendia fruta, com várias bancas a apregoar o seu produto. Ao subirmos, uma menina vem tentar vender-nos lenços de papel. Uma menina com não mais de três anos, de vestido rosa sujo e com uma tristeza no olhar que nunca deveria estar em alguém daquela idade. Estendeu-nos a mão e pediu um dirham, cerca de dez cêntimos. Por muito que me tenha custado, não dei nada. Primeiro, porque é estar a dizer-lhes que afinal vale a pena estar a pedir na rua em vez de estarem em casa a dormir; segundo, porque depois podem aparecer mais e não se pode dar a todos; terceiro, porque sou um forreta insensível. A Xana e a Rita, mulheres e por isso menos sociopatas, deram-lhe treze dirhams. Há muito tempo que não via uma criança tão feliz e há muito tempo que a felicidade de uma criança não me deixava tão triste. Foi com as moedas nas suas pequenas mãos, a correr o máximo que podia e a gritar em plenos pulmões «Maman, maman!» para mostrar a sua conquista à mãe. O irmão, uns quatro ou cinco anos mais velho, empurrou-a e disse-lhe que nos viesse pedir mais. Ela não veio e veio ele. Apesar da insistência não lhe demos nada. Pediu, pediu e insistiu. Veio atrás de nós a pedir durante uns quinhentos metros. A implorar. A humilhar-se, quando quem devia estar envergonhado éramos nós por fazermos parte da fatia do mundo que vive bem e se queixa enquanto as restantes, a maior parte, está na merda. Crianças sem culpa, sem hipótese de escolherem o que querem ser quando forem grandes até porque muitas não o chegam a ser. Crianças sem oportunidades, só porque nasceram no local errado à hora errada. A culpa é de todos nós e daqueles pais, que nunca o deviam ser e que fazem com que os seus filhos andem ali na rua a pedir àquela hora. O pai provavelmente passa do dia no café a beber chá e a ver a bola. Não sei se a educação tem grandes custos em Marrocos, mas mesmo que seja gratuita, acredito que muitos pais prefiram que os filhos peçam esmola ou trabalhem, do que tenham a ilusão de que podem vir a ser doutores ou engenheiros. Aquelas crianças não tinham o sorriso rasgado e a alegria que se vê em muitas outras de países pobres mas que parecem sempre felizes. O olhar daquelas crianças não reflectia as luzes da cidade.

Quando nos livrámos do puto ranhoso, pude sacar finalmente da carteira para comprar futilidades. Fui comprar uma espécie de nougat que havia à venda numa banca de rua. Levei um saco com diferentes variedades e fomos para o terraço do hotel beber o nosso vinho e jogar uma cartada. Vou todo pimpão para provar a minha compra, meto um à boca e trinco. Mastigo e sinto algo demasiado duro até para um nougat. Voltei a trincar e a sentir. «Deve ser um vidro!» digo eu na brincadeira enquanto levo os dedos à boca para ver do que se tratava. Qual não é o meu espanto quando tiro de lá um prego ferrugento! Um prego! Nem era um parafuso, que toda a gente sabe que escorrega muito melhor pela tripa. Era um prego que se eu o engolisse era menino para me fazer sofrer durante uns dias antes de me enviar para junto do criador.

O marroquino deve ter ouvido dizer que os portugueses tinham uma comida que se chamava "Prego no pão" e quis fazer cozinha de fusão.

Olhem aqui o bicho que quase fez com que este vosso menino falecesse:


No dia seguinte, levantámo-nos, tomámos o pequeno almoço e fomos embora, para chegarmos cedo e aproveitarmos a praia e a piscina da nossa última paragem. Chegámos ao carro e somos novamente abordados por um guia que queria que fossemos com ele ver a cidade antes de irmos embora. Tinha cabelos brancos e um sorriso honesto. Dissemos que não podíamos, que tínhamos mesmo de ir embora e ele insistiu mais algumas vezes, mas sempre com respeito e simpatia. Percebeu que não iria mesmo conseguir demover-nos e então pediu-me algo: pediu-me canetas! Disse que tinha muitos filhos e que não tinham com o que escrever para estudar. Só tinha uma, uma Bic sem tampa, e dei-lha de bom grado. Ele agradeceu emocionado pelo que chamou «um regalo de Portugal». Como é que se consegue continuar a ser rei num país em que há crianças que nem uma caneta têm para estudar? Bem, é exactamente assim que se consegue ser rei: com educação precária e religião castradora.

Como sempre, aqui ficam mais umas fotografias manhosas que tirei com o telemóvel e amanhã a saga termina em Moulay Bousselham, uma aldeia no litoral. Fiquem atentos que tem histórias giras para contar. É muito parecida com Portugal, mas só ao nível de nos tentarem enganar nos restaurantes.




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26 de agosto de 2015

Aventura em Marrocos (2/4): Marraquexe



Para quem não leu, a aventura marroquina começou em Chefchaouen, onde, depois de pernoitarmos, seguimos viagem em direcção a Marraquexe. Foram cerca de 700 quilómetros, duzentos dos quais feitos em estradas secundárias, com dezenas de operações STOP à entrada e saída de todas as terriolas por onde fomos passando. Para nossa desilusão, nunca nos mandaram parar nem olharam duas vezes para o nosso carro. Matrícula portuguesa deve ser sinal de falta de dinheiro para pagar multas inventadas. Ainda dizem que a crise não tem vantagens. A viagem foi demorada mas fez-se bem. Passámos pelo centro de Rabat, a capital marroquina, onde conduzimos por entre um serpentear caótico de carros e motas. A cada segundo havia uma contra-ordenação grave e pessoas a atravessar vias rápidas a pé, numa pressa que contrastava com a cidade que parecia ter parado no tempo há vários anos. Mais uma vez, as ruas iam tendo as faixas que dessem jeito e facilmente uma estrada com duas faixas, se transformava numa autobahn de seis para cada sentido.

Chegámos a Marraquexe já o sol se tinha escondido há muito. Já passava um pouco da meia-noite e tal como na primeira paragem, o riad ficava já dentro da Medina nas estradas onde apenas passam burros anorécticos. Percorremos os labirintos castanhos da cidade quase deserta, depois de um dia intenso de comércio. Estacionámos o carro ao ver um sinal de passagem proibida e quando o GPS nos dizia que só faltavam mais 300 metros que tinham que ser feitos a pé. 

Deixámos ali o carro, num beco que convidava ao assalto e ao amor feito no rabo sem consentimento.

Fomos apressados mais confiantes nas reviews do TripAdvisor que diziam que Marraquexe era mais segura que a Buraca. De malas aos ombros e trolleys pelo chão, fazendo um barulho no asfalto que fazia as poucas cabeças acordadas virarem-se para ver o que se passava, lá fomos. Chegámos a um cruzamento e ao esperarmos que o GPS actualizasse a posição, veio um grupo de rapazes ter connosco a perguntar qual era o riad que estávamos à procura. Dissemos o nome, ele disse que era já ali e que ia connosco. Nós fomos.

- Spanish? - pergunta ele.
- No, portuguese. - respondo eu.
- So you speak spanish.
- Yes, but in Portugal we speak portuguese.
- Similar to brazilian?
- In Brazil they speak portuguese as well, but a diferent accent.
- Ok. Me gusta mucho Cristiano Ronaldo.
- Vale.

Entramos por becos quase sem luz, sem ninguém, com esse rapaz mais velho ao meu lado e dois mais novos atrás a ver se também pingavam uns dirhams para eles. O André pergunta-me se estamos a ir na direcção certa, como quem já tem um pinguinho na cueca. Eu não tinha a certeza mas disse que sim na mesma. Nisto, apagam-se as luzes. Toda a cidade fica às escuras! Passou-me logo pela cabeça que poderia ser um plano elaborado para nos assaltarem, mas depois pensei que era parvo já que os marroquinos, que eu saiba, não vêem no escuro como os gatos. O rapaz acendeu a lanterna do telemóvel e continuou a guiar-nos. Passámos por um túnel onde se vislumbravam sombras de várias pessoas, construídas apenas pela luz da lua que ia alta. Passámos no meio deles, cheios de confiança de que talvez fossemos ser assaltados. Não fomos. Chegámos ao riad, demos cerca de dois euros ao rapaz, como havíamos feito com os outros na cidade anterior, e ele diz que é pouco. Pede mais e nós damos outros três. Ele queria ainda mais, mas recusámos. Ele agradeceu, foi-se embora e nós entrámos pela porta que separava as casas degradadas, do riad luxuoso que em Portugal custaria duzentos euros a noite, pelo qual apenas pagámos 20€ cada um. Deixámos as malas e fomos até ao terraço apreciar o céu estrelado que a falha de electricidade na cidade destapou. Ficámos ali algum tempo na conversa e depois fomos dormir.

Acordámos cedo, tomámos o pequeno almoço e depressa saímos do riad para ir explorar a cidade. Íamos com alguma apreensão mas descansámos ao ver que o carro estava são e salvo, sem vidros partidos ou sinal de arrombamento. Desde logo fomos abordados por um marroquino que disse que não era guia mas que nos indicava o caminho para o centro. Insistiu para irmos ver o sítio onde trabalhavam as peles dos animais e impingiu-nos a outro marroquino que ia a passar, dizendo que ele ia para lá, pois era lá que trabalhava. Seguimo-lo, com ele sempre a dizer que não era guia, sinal que nós pensávamos ser a indicar que não queria dinheiro. Andámos atrás dele a passo apressado durante quinze minutos, em curva e contra curva, por entre ruas e ruelas apinhadas de gente, de motas e de carroças. Havia bancas a vender abacates ao lado de pilhas de lixo em todo o lado.

Havia pão e croissants que pareciam cobertos de chocolate mas que ao chegar mais perto se via ser um aglomerado de moscas. 

O cheiro na cidade também não é o melhor, é uma espécie de bedum, com terra e peixe deixado ao sol em banho-maria de urina. Lá chegamos a um local onde o nosso não-guia nos deixa e se apressa a ir embora. Pensámos "Epá sim senhor, um gajo que dá indicações sem querer dinheiro". Nesse momento, é-nos dado para a mão um ramo de menta a cada um e somos convidados a entrar no local onde as peles eram feitas. O ramo de menta era para contermos os vómitos devido ao cheiro de carne putrefacta. Cheirava a morte e a fim do mundo. Tentei respirar sem a menta perto do nariz durante uns segundos e só não chamei o tio Gregório porque ele não estava atento. O senhor que nos acompanhava, foi explicando o processo do tratamento da pele, do qual só retive que passava por tirar o pelo, mergulhar em caca de pombo e depois passar por cal. Os motards e as dominadoras vestidos de cabedal estão, portanto, cobertos de roupa que se faz com fezes de pombo. Depois de cinco minutos de visita guiada fomos deixados por ele, sem pedir nada em troca, numa loja de dois pisos cheia de artigos feitos com a pele que ali se tratava. Trabalhavam ali mais de quarenta famílias, numa espécie de favela improvisada e construída à volta daquele recinto nauseabundo. Fomos recebidos por um senhor já de meia idade, porte forte e com um sorriso rasgado.

- Bien venidos à nuestra cooperativa. Puedes ver e se te gusta puedes comprar. Si no, no hay problema.
- Gracias, vamos a ver.
- Portugueses son como los Marroquinos... tesos. Hahaha.

Acabámos por comprar uns cintos de pele, e, ao sairmos, aparece o primeiro marroquino que encontrámos à saída do riad, logo seguido pelo que nos fez a visita guiada pelas peles. Este último pediu-nos 5€ a cada um, que nós feitos parvos pagámos. Devíamos ter dado 5€ por todos e ele que fosse endrominar pessoas para outros lados, mas ainda estávamos verdes e cedemos à pressão, bem vistas as coisas era só o nosso terceiro dia em Marrocos. Nisto aparece também o outro não-guia que andou connosco mais tempo. No total, com os cintos, gastámos ali 60€, de onde comeu o senhor da loja e os três marroquinos simpáticos que diziam não ser guias. As mulheres andam de burca preta a mostrar os olhos, mas eles é que são ninjas da aldrabice.

Fomos ao centro e almoçámos no terraço de um restaurante, com uma vista fantástica para a azáfama da praça Jemaa El Fna e as suas tendas, encantadores de serpentes e bancas de sumo de laranja natural, que usavam copos de vidro embora não tivessem água para os lavar. A vitamina C mata o bicho, dirão eles. Pedimos vários pratos e todos eles estavam uma valente merda. Os couscous de frango que pedi eram suficientes para alimentar três pessoas mas estavam mal cozinhados e temperados. Não fiquei fã, mais uma vez, da comida marroquina. Fomos passear, comprámos Ray Ban contrafeitos e puseram-me uma cobra ao pescoço para tirar foto. Não tirei e disse que não havia dinheiro por me ter colocado um réptil sem autorização. Jantámos no hotel, uma tajine de galinha, a primeira refeição decente em terras de sua majestade marroquina. Foi a Rita, namorada do André, que pediu o jantar e disse ao senhor "It's a tajine kitchen".

Kitchen, chicken, soa tudo ao mesmo e pelos vistos sabe igual.

O segundo dia começou antes das oito da manhã, já que tínhamos marcado uma excursão às cascatas de Ouzoud, logo cedo. Fomos com mais dois casais que não conhecíamos, numa carrinha de nove lugares, conduzida por um marroquino com o demónio no corpo que deve ter tido aulas de condução com o instrutor de ski do Schumacher. Era suposto serem duas horas de viagem mas acabaram por ser três, mesmo com a condução psicopata do motorista de belzebu. A meio parámos uma loja de óleos que devia ser da prima dele, para ver se nós comprávamos alguma coisa. Nem entrámos, já fartos de que nos tentassem sempre impingir os negócios dos amigos e da família. Ao chegar as cascatas o senhor disse-nos que nos deixava ali e se quiséssemos para contratarmos um guia, algo que nos deixou a todos, os oito, estupefactos, pois pensávamos que o que tínhamos pago já tinha guia incluído. Parece que não. Eu refilei um bocado mas também não estava para me chatear. Se soubéssemos disso tínhamos ido com o nosso carro e teríamos poupado uns 60€. Apareceu logo um gajo com ar de jamaicano a vender-se como guia, disse que nos levava aos sítios menos turísticos e mais calmos e que cobrava apenas três euros por pessoa. Mais uma vez, cedemos e lá fomos com ele. Era um gajo simpático que foi sempre contando a história dos locais por onde passávamos, da forma de como as famílias ali viviam quase todas das oliveiras que se sucediam por entre as margens dos penhascos que embalavam as várias quedas de água paradisíacas que se deitavam de vários metros de altura.

- Down there, is where I live with my community. My family and friends. We are a nomad people, we stay in a place for a few years, then we go. We go and we never come back. - diz ele com um brilho nos olhos.
- How long do you live here? - pergunto.
- All my life. I'm 30 years old.
- Ok...
- I'm not arabic. I'm a free man. Me and my Bob Marley family.
- Great! - digo.
- When I say Bob Marley, I'm not saying we are going to buy and sell ganja. It's more about music and freedom.
- Yes, of course. Peace and love. - sorrio.
- Exactly my friend. - diz ele com a mão no meu ombro - Peace and love... and ganja.

Rimo-nos e lá fomos andando, descendo e subindo ravinas escorregadias mas onde havia os ramos das árvores para nos segurarmos, ou nos ampararem a queda. Vimos cascatas e bebemos um sumo de laranja feito com água da nascente, enquanto ele foi fumar uma ganza com os outros dois casais de turistas. Fomos ao banho, numa água castanha mas da argila e não de sujidade. Faz bem à pele, dizem eles. Mergulhámos, passámos por trás das quedas de água e ficámos ali, um pouco, naquele pedaço de paraíso num país que as únicas riquezas que tem são estas naturais. Secámos, encontrámos um casal de portugueses, os únicos em toda a nossa estadia em Marrocos, voltámos a subir, andámos de barco e vimos macacos selvagens de perto. Pagámos ao nosso guia e despedimos-nos dele. Enquanto comíamos algo à espera do motorista assistimos a uma cena de pancadaria entre dois locais que surgiu do nada à porta do restaurante. Não sabemos o motivo, mas vimos as mulheres todas aos gritos e a chorar, quais carpideiras do UFC. Reparei que eles não lutam ao soco, dão chapadas de mão aberta, talvez por todos viverem do trabalho feito com as mãos e ninguém querer arriscar um pulso ou dedos partidos. Isso, ou são todos umas Marias Amélias que não sabem andar à bulha. Não eram chapadas à Krav Maga nem à padrasto, eram chapadas de meninas da primária. Aquilo acalmou e fomos à nossa vida, em mais uma viagem de três horas, cheia de solavancos, buracos e perigos de morte.

Se o avião é o transporte mais seguro do mundo, aquela carrinha de nove lugares conduzida por aquele senhor era o menos seguro de sempre.

Chegámos e jantámos fora. hambúrguer de dromedário, só porque sim. Sabe a vaca porque provavelmente era vaca. Fomos até à praça central e ficámos admirados com a vida que ela tinha ganho desde a tarde do dia anterior. As pessoas eram dez vezes mais, as luzes dos candeeiros e velas à venda também. Havia fumo da comida que perfumava toda a praça e escondia os aromas menos convidativos às narinas europeias. O André tinha partido os óculos que tinha comprado e, por isso, quis ir ver de outros. A banca onde os tínhamos comprado já estava fechada e fomos a outra. Um senhor, musculado e sem ar de marroquino, antes com ar de quem esteve já preso por violar pessoas e animais, atendeu-nos com uma euforia desmedida de sermos portugueses. O André queria um modelo igual aos outros:

- I broke others and I want ones equals! - diz-lhe, mostrando que ele e a sua Rita, da tajine kitchen, foram feitos um para o outro.
- Equals? - questiona o vilão do James Bond, virando-se para outro a perguntar se ele tinha "equals" - No. Only Ray Ban, Dolce Gabbana, Gucci... - termina.
- No no! Ray Ban but equals! - insiste o André.
- Ray Ban equals? I don't have that model, sorry.

Rimo-nos que nem perdidos e reparámos que já não sabíamos o caminho de volta à praça. Vários locais tentaram-nos dar indicações e diziam-nos até que por onde estávamos a ir estava fechado e era perigoso. Tudo para nos enganar e irmos com eles e abrirmos a carteira. Ignorámo-los a todos e fomos dar ao sítio certo, claro. Aldrabões. Fomos ver de mais umas compras e chegámos a uma tenda onde o André e a Rita decidiram comprar um bule e copos de chá. As negociações foram mais intensas que as do Eurogrupo e mais acesas que as da minha mãe a discutir com o meu irmão para ele sair da cama às quatro da tarde. Já todos sentados no chão, a escrever vários valores numa folha para que não houvesse mal-entendidos. O vendedor era um fartote e genuíno, o riso foi constante e ele parecia ter ido com a nossa cara, mas pode ter sido como as strippers nos conseguem convencer que se sentem atraídas por nós, só para nos sacar dinheiro. Seja como for, eles compraram o bule e eu e a Xana comprámos um candeeiro que também foi alvo de muita especulação de mercado. Fiz um bluff a vir-me embora só porque ele não descia dois euros finais para dar conta certa. Deu resultado e ele cedeu porque claro que ainda estava a ganhar balúrdios naquele candeeiro de bronze com trabalho feito à mão por crianças marroquinas.

- Good luck to you my friends. - diz ele com um sorriso na cara.
- To you to.
- Don't forget, you have to marry and have children, so make good fuck tonight. Always good fuck.

Rimo-nos, apertámos a mão e saímos de lá com mais do que bujigangas para a casa, mas sim com uma experiência genuinamente marroquina e uma hora bem passada. Depois de mais umas voltas, decidimos ir de táxi para casa, outra experiência que se deve ter em Marrocos. Apesar de nas estradas vermos táxis com sete ou mais pessoas todas amarfanhadas no banco de trás, sempre que nós pedimos um disseram-nos que só levavam três pessoas e que, por isso, tinham que ser dois carros a levar-nos. Uma camaradagem taxista para que todos tenham mais serviço, obviamente. Os táxis são, invariavelmente, carros velhos, batidos e riscados, que vão desde Fiat Uno a Mercedes 200d do tempo em que o meu avó tinha idade para ir à tropa. Lá negociámos com um que concordou levar-nos aos quatro e baixámos o preço de 10€ para 6€. Não há taxa de activação para ninguém e o taxímetro existe mas está sempre desligado. Ele ia a conduzir e a falar ao telemóvel e passámos mesmo em frente ao posto da polícia, todos sem cinto. Uma terra sem lei, não muito diferente da Buraca onde toda a gente sabe que os sinais vermelhos são só para enfeitar. Chegámos ao riad, fomos dar cabo da segunda box de vinho que tínhamos levado de viagem, enquanto jogávamos à sueca, só para nos sentirmos mais na Europa. No dia seguinte, foi acordar, pagar e seguir viagem, rumo à próxima paragem, Meknès, a capital Berbere, mas isso ficará para a próxima parte.

Aqui ficam umas fotos a demonstrar, mais uma vez, as minhas capacidades artísticas ao nível de usar o telemóvel. Amanhã, a saga continua.






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25 de agosto de 2015

Aventura em Marrocos (1/4): Chefchaouen



Parece que voltei de férias. Ainda estou naquela depressão e stress pós traumático de quem voltou ao trabalho e, por isso, com pouca criatividade para textos que exijam imaginação. Como tal, durante esta semana, vou contar-vos a minha viagem por Marrocos, dividida em quatro partes, que foram as cidades que visitei.

Sexta-feira, por volta das onze da noite, eu, a minha namorada, e um casal amigo, partimos da Buraca em direcção a África. 

Não estou a falar de atravessar a estrada em frente a minha casa para entrar na Cova da Moura.

Foi mesmo para o continente Africano. Arrancámos de carro em direcção a Algeciras, em Espanha, para apanharmos o barco até Tanger, de onde seguiríamos viagem até ao nosso primeiro destino, a cidade azul bebé, Chefchouen. A parte europeia do trajecto correu sem sobressaltos e chegámos a Algeciras por volta das 6.30h. Quando digo sem sobressaltos foi apenas porque o André se enganou a marcar o barco e marcou para as 8h em vez das 6h, como era suposto, caso contrário tínhamos ficado a ver navios, literalmente. Ele tem esse dom, uma vez enganou-se a apostar na Internet mas com a maior sorte do mundo o modesto Fátima ganhou ao Marítimo e ele ganhou quinhentos euros. Bem, lá esperámos pelo barco cerca de uma hora e meia, passámos pelos postos de controlo todos, onde mostrámos os passaportes uma e outra vez a polícias espanhóis pouco bem dispostos. Ninguém os pode julgar já que trabalhar a um sábado às sete e pouco da matina não é para quem quer levar a vida a sorrir. Lá entramos no barco, estacionamos o carro e subimos.

Contemplámos a paisagem iluminada pelo sol acabado de nascer e levamos com a brisa marinha no focinho ensonado. Fui ao WC fazer um xixizinho e desde logo me deparo com um acto atroz de terrorismo. Uma sanita cheia até ao cimo do que parecia ser o interior liquefeito de uma pessoa inteira. Uma amalgama épica de fezes, um autêntico Evereste de merda. Com uma directa em cima, com o balançar do barco e aquele cheiro a fim do mundo, confesso que tive que me conter para não regurgitar as bolachas de chocolate e batatas fritas que tinha comido na viagem. Em todo o barco havia um cheiro a vómito ressequido, pessoas mais fracas de estômago do que eu que haviam bolsado o seu interior algures num canto. Havia uma fila interminável para carimbar o passaporte, algo que era feito a bordo e após preenchimento de papelada. Claro que, à bom português, fomos os últimos a fazê-lo, já o barco estava atracado, sem termos estado a viagem toda à espera de, de pé, na fila. Os marroquinos têm jeito para o negócio mas nós temos as filas das lojas do cidadão  e da charcutaria do Pingo Doce que nos dão estaleca para este tipo de coisas.

Saímos do barco e cheiramos África pela primeira vez. Cheirava normal, normal, se ninguém me dissesse eu era capaz de jurar que apenas tinha apanhado o cacilheiro para a margem sul. Vamos pela direcção que sucessivos polícias nos vão indicando e passa por nós o primeiro veículo em sentido contrário, algo que veríamos mais à frente ser normal. Chegamos ao posto de controlo da fronteira onde somos mandados parar, juntamente com todos os outros carros. Uns dez polícias, todos em rodinha a conversar, não nos passam cartão nenhum e temos que ser nós a ir ter com eles a perguntar o que era preciso. Seguiu-se uma sucessão de papeis, carimbos, selos e declarações e aprovações. Foi aquele sketch dos Gato Fedorento do "Papel, qual papel", mas numa mistura de francês, espanhol e inglês. Revistam-nos o carro que é como quem diz que abriram a bagageira, olharam para as malas e perguntam "Alguma coisa a declarar?". Nós dizemos "não", eles acreditaram e seguimos viagem. Esperava-nos uma viagem de apenas duzentos quilómetros, mas por estradas onde até as cabras teriam entorses mesmo não usando saltos altos. Por entre vales e desfiladeiros, uma faixa para cada lado ou para o lado que desse mais jeito, já que as ultrapassagens nas curvas, com traço contínuo eram uma constante. Em Marrocos, as estradas têm as faixas que forem precisas. De vez em quando ia um carro no meio e os outros afastavam-se para a berma. Normal.

Passado uns tempos também nós já conduzíamos à taxista português depois de uma noite na casa da mãe Kikas.

Chegámos a Chefchouen por volta das três da tarde, com o sol a aquecer até aos 35ºC. As casas azuis escalavam as montanhas e recortavam o horizonte que emoldurava a cidade pitoresca de estradas apinhadas de gente, carros e burros. O GPS não apanhava a rua do Riad onde iríamos pernoitar e andámos uma meia hora às voltas. Ao passarmos pela segunda vez na mesma rua começámos a ser abordados por transeuntes a perguntarem se queríamos indicações. Como já sabíamos o que a casa gasta e que nenhuma das indicações era de borla, dissemos sempre que não. Eles são gajos insistentes e houve um que se meteu a correr atrás do carro numa subida. Passado um quilómetro ainda o conseguíamos ver pelo retrovisor a correr de braço no ar a gritar "Cristiano Ronaldo" e "Batatas fritas". Não me perguntem porquê, mas sempre que dizíamos que éramos portugueses diziam "Obrigado, sardinhas e batatas fritas". Eu a pensar que fish and chips era na Inglaterra... Entrámos por uma rua onde o carro quase não cabia e fintámos (qual CR7) o marroquino.

Subimos até uma rotunda que pelo mapa parecia ser perto do Riad. Uma curiosidade sobre rotundas marroquinas: são sempre antecedidas por um quilómetro de fila porque os gajos não as sabem usar. Há sempre um polícia em cada rotunda a controlar o trânsito porque com eles não há prioridades, faixas ou qualquer tipo de cortesia ao volante. É o caos e esta não era excepção. Carros estacionados a tapar caminho, as carrinhas ou automóveis maiores tinham que fazer a rotunda em sentido contrário para conseguirem passar. Cometemos o erro de parar para perguntar uma informação ao polícia e nisto aparecem logo dez marroquinos a "oferecer" ajuda. Já estávamos tão fartos de andar de carro que cedemos e estacionámos num parque improvisado por um deles, onde nos mandou parar o carro a tapar a saída a três ou quatro, mas que ele dizia não haver problema. O parque eram vinte dirham que são mais ou menos dois euros, pela noite. Pareceu-nos aceitável. Nisto apareceram mais dois marroquinos a dizer que nos levavam ao Riad e que era já ali. Um mais velho e outro mais miúdo com umas favolas de meter inveja aos outros marroquinos, muitos deles desdentados. Lá fomos atrás deles que levaram algumas das nossas malas aos ombros e nós sentimo-nos quais sultões da Pérsia com os seus escravos. Eles iam com passo acelerado e ao dobrar uma esquina a Xana, minha namorada, e a Rita, namorada do André, aceleram também o passo com medo que eles fossem fugir com as malas. São pessoas sem olho para detectar criminosos, algo que eu e o André, por vivermos na Buraca e Damaia, respectivamente, já sabemos fazer de olhos fechados. Era óbvio que eles, com menos de 60kg de massa pouco muscular, não iam fugir com malas de mulher com 30kg de roupa aos ombros. Até porque vestidos e calções curtos não se vendem bem naquelas zonas. O Riad era realmente logo ali e eles depois de nos deixarem ficaram a olhar para nós, como quem pede alguma coisa. Dissemos "Obrigado" e "Daqui não levas nada meu monhé, foste enganado na tua própria terra, és mesmo tonhó das ideias seu cafajeste!". Mentira, demos dois euros a cada um e agradecemos. Eles pareceram-nos contentes e cada um foi à sua vida.

Explorámos o quarto e o terraço, tomámos banho e fomos passear pela cidade. Andámos pela Medina e pelas ruas labirínticas coloridas a azul recém nascido, de onde brotavam pessoas e lojas de artesanato de todas as esquinas e ruelas. A cada passo, o cheiro a peixe misturava-se com o cheiro dos sumos de laranja acabados de fazer e com as especiarias expostas nas bancas de cada canto arredondado, por cada vão de escadinhas da mesma idade do azul que as pintava. A cidade era limpa e as casas tratadas. Apesar de vermos poucos turistas, pelo menos não locais, não havia muito assédio para nos venderem coisas ou nos darem indicações. De vez em quando, alguém nos perguntava se queríamos droga, mas ainda assim menos vezes do que as que me perguntam numa noite normal no Bairro Alto. Chefchaouen é conhecida por ser a cidade onde as pessoas se abastecem de droga e talvez por isso não fossem de estranhar as camisolas à venda, da selecção de Portugal, com o nome de Sara Norte em vez de Cristiano Ronaldo. 

Reza a lenda que ela, para além de levar bolotas no rabo, também conseguia lá transportar tapetes, narguilés e cajus com piripiri.

Notava-se que o comércio estava mais fraco desde que ela deixou de ser cliente. Passeámos, regateámos umas túnicas e umas outras vestimentas para irmos jantar trajados a rigor. Escolhemos um restaurante na praça central, que estava bem cotado no TripAdvisor, escolhemos quatro tipo diferentes de tajines, que é uma espécie de caçarola de barro onde eles fazem estufados com carnes e vegetais variados. Não eram más, mas estava à espera de melhor, aliás, a comida em Marrocos foi uma desilusão, mas sobre isso falaremos depois. No final da refeição bebemos o famoso chá de menta que vinha carregado de açúcar e sabia a pastilha elástica com recheio de pasta de dentes.

A noite caiu e demos mais uma volta pela cidade a apreciar a sua beleza única e a sensação de estarmos num país realmente diferente do que estamos habituados. Era outro planeta, saído da mente de George Lucas depois de fumar umas bolotas locais. Fomos para o quarto, direitos ao terraço, onde jogámos às cartas que haviam sido compradas numa espécie de papelaria que vendia tudo, e onde as regateámos de 2€ para 1€. Dois baralhos, uma pechincha. Jogámos umas horas, acompanhados de um vinho de box Ermelinda que viajou desde Portugal. Ouvimos os altifalantes com as rezas e o barulho na rua era constante, fazendo crer que a cidade não queria dormir mesmo sem ter bares, discotecas ou qualquer estabelecimento de diversão nocturna. Fomos nós dormir por ela, depois de estarmos mais de 36 horas sem dormir e de 16 horas de viagem. Acordámos restabelecidos e tomámos um pequeno almoço impecável, com direito a pão, queijo, manteiga, mel, ovos e outras coisas boas, servidas por um marroquino muito simpático e cheio de salamaleques. Pagámos e deixámos uma gorjeta aos empregados que foram realmente atenciosos e que se via serem boa gente. Eles agradeceram-nos com um passou-bem no qual, ao contrário do nosso, levam a mão ao peito antes do aperto de mão. Talvez um sinal de respeito ou, quem sabe, para limpar macacos do nariz que com o calor ficaram ressequidos nos dedos. Consigo estragar todos os momentos bonitos.

Fomos à nossa vida. O carro estava no parque, seguro e sem os carros que estavam atrás do nosso. Não sei como os tiraram de lá sem ser por peças ou a arrastarem o nosso com o auxílio de um boi-almiscarado. Sem desvendarmos esse mistério, partimos em em direcção à próxima cidade, Marraquexe, que seria o nosso poiso durante três noites e que tem muito para contar mas que deixarei para a próxima parte. Deixo-vos com umas fotografias para verem que eu sou muito artístico a capturar momentos em formato digital, e, amanhã a saga continua.






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