18 de abril de 2016

Tipos de assalto na Buraca: dicas e quebra-gelos.



Como qualquer criança que nasceu e cresceu na Buraca, foram várias as vezes que me assaltaram e muitas mais as que tentaram, mas que consegui evitar. Fugir, pronto. Crescer na Buraca é uma aprendizagem constante sobre como detetar o perigo e fui desenvolvendo o meu sensor aranha capaz de antecipar uma intenção de assalto ainda antes do próprio gandim decidir que ia praticar mais um roubo. Os criminosos vão passando o conhecimento uns para os outros e embora chumbassem a todas as outras disciplinas, passavam com distinção à de "Técnicas Laboratoriais de abordagem criminosa". Para os menos experientes nestas andanças, talvez pareça desnecessária uma boa abordagem e pensem que é como novelas da TVI escritas sem conhecimento de causa onde o meliante grita sempre «Isto é um assalto!» antes de o perpetrar. Não é assim que acontece na vida real onde o fator surpresa é essencial para quem faz carreira no crime. Tal como no engate, a frase de abertura é importante para causar uma boa impressão e para fazer com que a presa baixe a guarda e facilite a conquista, neste caso, a carteira. Partilho convosco as técnicas para quebrar o gelo mais utilizadas na minha zona:

Tens horas?
50% dos assaltos na Buraca começam com esta simples pergunta. Mesmo que na altura ninguém tivesse telemóvel e se visse perfeitamente que não tinha relógio no pulso, muitas vezes era abordado por pessoas que valorizam a pontualidade nas suas vidas e que precisam de saber sempre que horas são. O diálogo era mais ou menos o seguinte:

- Tens horas?
- Não, não tenho relógio.
- Então passa a carteira.

Ficava sempre a pensar se o assalto era uma espécie de vingança por não ter horas que lhes dissesse e que tudo aquilo poderia ter sido evitado se os meus pais me comprassem aquele Casio que dava para meter cábulas para os testes que eu já lhes havia pedido inúmeras vezes. Como criança curiosa que era, quando finalmente me compraram um relógio, aliás, quando o meu pai trouxe um daqueles Swatch manhosos que saiam nos leites Parmalat lá do armazém, decidi testar a minha teoria:

- Tens horas?
- São quatro e meia. - digo exibindo de forma orgulhosa o meu Swatch.
- Ainda bem. Quatro e meia é mesmo aquela hora do assalto. Passa a carteira. E o relógio também.

Vendo agora... talvez fosse previsível.

Deixa dar uns toques.
Ahhh, uma das técnicas de assalto mais utilizadas na minha bela localidade. Um simples pedido que num mundo ideal, onde não há crianças que nascem com estigmas e sem as mesmas oportunidades do que as outras, seria apenas um pedido para se juntarem a um jogo de futebol num alegre convívio. Como o mundo não é assim perfeito, longe disso, este pedido servia como a predileta abordagem ao roubo de bolas de futebol. Foram várias, perdi-lhes a conta, as bolas que não voltaram para casa, pelo menos para a minha. Era simples e rápido:

- Deixa dar uns toques.
- Toma.
- Vá, agora saiam do campo que a gente quer jogar com esta bola nova.

A outra técnica, mais cobarde, quando eles eram menos do que nós, era chutar a bola para cascos de rolha e dizer «Deixa estar que a gente vai buscar.». Não mentiam: iam mesmo busca-la, mas não voltavam.

Orienta-me 50 cêntimos.
Ainda nem o 50 cent tinha aparecido no panorama do Hip Hop, já havia vários assaltantes na minha zona que tinham a alcunha de 50 cêntimos. Eram rapazes empenhados e que todos os dias às nove da manhã lá estavam no caminho para a Escola Secundária D. João V na Damaia a trabalhar na portagem. Foi a primeira vez que vi uma SCUT que costumava ser gratuita a passar a ter custos. Havia quem levasse 50 cêntimos já de propósito para o pagamento, evitando todo aquele desconforto quando se chega à portagem e vemos que nos esquecemos da carteira em casa: juramos a pé juntos que só reparámos naquele momento e que não foi por mal. Óbvio que nos deixam passar, mas sabemos que mais cedo ou mais tarde vamos pagar. Havia um dos portageiros do gueto que nunca roubava mais do que o valor que tinha pedido mesmo que visse mais moedas na carteira. Aliás, ele levava tão a sério a profissão que só cobrava mais aos miúdos gordos: «Camiões pagam mais.» dizia-lhes enquanto lhes roubava o dinheiro e a um pouco da autoestima.

Fiu fiu!
Fiu fiu? Sim, um simples assobio ao longe era sinal que ia haver stress. O assobio ia crescendo de intensidade e aumentando a cadência caso optássemos por ignorá-lo. Cada vez mais perto, sabíamos que estavam no nosso encalço pessoas fofinhas que nos queriam roubar. Se continuássemos a ignorar, o assobio transformava-se num «Ohhh, tu aí! Tou-te a chamar-te! Espera aí, não é para te fazer mal!». Fazia lembrar aquela cena do filme Marte Ataca em que os extraterrestres vão dizendo no megafone «Viemos em paz! Não tenham medo!» isto enquanto destroem e matam tudo por onde vão passando. Perante esta abordagem, tudo dependia da distância que nos separava do coito nesta apanhada do crime. Se víssemos que conseguíamos chegar a segurança a tempo, mal ouvíamos o primeiro assobio era como se estivéssemos na linha de partida dos 100 metros e fosse dado o tiro de partida. Era correr pela vida sem nunca olhar para trás! Às vezes os mais gordos eram apanhados e lá tinham de pagar portagem por todos. Quando eles já estavam muito em cima e sabíamos que iria ser impossível fugir-lhes a única forma de nos livrarmos deste assalto era pagar-lhes para não nos assaltarem. Há quem chame a isso um roubo.

Onde é que compraste esses ténis?
Esta pergunta era a pior que se podia ouvir porque ninguém gosta de ir descalço para casa. Raramente era uma pergunta inocente vinda de um rapaz que gostava de moda e calçado e trazia sempre no bico a cobiça dos ténis alheios. Era nestas alturas que eu agradecia só ter roupa comprada na feira de Benfica:

- Onde é que compraste esses ténis?
- Na feira dos ciganos.
- Hum mas isso é Nike.
- Não é. Repara bem… é Niko.
- Xii, ténis de merda! E quanto é que calças?
- 45.
- Esquece, só calço o 41.

Terminava ele deixando escapar as suas reais intenções. Nunca me roubaram roupa, vá-se lá saber porquê, mas havia mitos urbanos, quais histórias de terror de acampamentos religiosos, que contavam que eram várias as pessoas que ali na zona tinham sido roubadas e deixadas completamente nuas na rua. Era um medo bem real que pairava sobre as nossas cabeças. Ambas as cabeças.

Orienta-me um night.
Esta abordagem para o assalto é mais recente e era usada quando já era mais velho. Isto porque os criminosos sabem que pedir um cigarro a uma criança é de mau tom. Assaltar, tudo bem, agora induzir um petiz inocente a fumar é que não. Há limites até para quem faz do crime o seu melhor amigo de infância. Lembro-me de sair da estação da Damaia a vir do Instituto Superior Técnico e ser abordado por um rapaz:

- Orienta-me um night.
- Não fumo, diz que mata.
- É. Isto também – diz-me enquanto tira um facalhão do Rambo, do bolso.
- É. Mas isso mata mais depressa.
- Haha ya. Passa a carteira.

Podem pensar que isto é traumatizante, mas acreditem que não. Não se esqueçam que estava a chegar do IST e isso sim, deixa traumas para a vida.

Tass bem?
Este era o pior tipo de assalto. Era o assalto em que não nos roubavam apenas valores materiais mas um bocadinho da inocência. O "tass bem" era feito por alguém que julgávamos ser uma pessoa de bem, com quem já tínhamos jogado à bola ou trocado algumas conversas. Na ingenuidade da idade achávamos que éramos amigos, mas a certa altura, éramos abordados na rua com um «Mekié! Tass bem?». Alegres e confiantes, estendíamos a mão e quando dávamos por ela, o cabrão estava a meter-nos a mão nos bolsos em busca de uma moeda amiga. Talvez isto tenha-me deixado marcas e seja uma das razões pelas quais parto sempre do princípio que todas as pessoas são mal-intencionadas até que me provem o contrário. Uma vez, ao ser assaltdo por um "tass bem" por um gajo com quem era habitual jogar à bola, no dia seguinte ele vem ter comigo e entregou-me o que me tinha roubado no dia antes. «Toma aí, desculpa a cena de ontem, mas estava com uns sócios meus e eles obrigaram-me a roubar-te.». Agradeci e percebi que muitas vezes as pessoas responsáveis pelos males do mundo são aquelas que estão na sombra a dar as ordens.


Não sei nos dias de hoje estas técnicas se mantêm ou se a era digital também já chegou aos assaltos da Buraca. Caso os assaltantes ainda não tenham adaptado as novas tecnologias para a abordagem criminosa, deixo aqui algumas sugestões:
  • Orienta-me aí o móvel para sacar uma selfie;
  • Orienta-me aí 50 likes;
  • Deixa dar uns swipes;
  • Diz-me aí o teu Insta para te dar um follow;
  • Deixa ver a versão do Android do teu móvel.

Depois, para além de levarem o dinheiro podem também roubar a password das redes sociais que hoje tem muito mais valor do que o telemóvel, a carteira e o relógio.




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