20 de junho de 2017

Só por curiosidade mórbida...



Todos sabemos que o ser humano tem uma atracção especial pelo que é mórbido. O exemplo típico disso é quando abrandamos o carro para ver um acidente, na esperança de podermos ver se é grave e estimar os estragos materiais e as perdas humanas através do vislumbre de sangue no chão, chapa amolgada e da quantidade de ambulâncias no local. Todos refilamos quando vemos que o trânsito, afinal, era por causa de um acidente na via contrária, mas ao passarmos pelo local também abrandamos e damos uma olhadela de relance para satisfazer a nossa curiosidade mórbida. Acontece o mesmo com as tragédias que enchem todos os jornais e especiais de notícias de horas e horas. Seja com os atentados ou, agora, com a tragédia dos incêndios que se abateu no nosso país mal-habituado a catástrofes desta dimensão, felizmente. Há um cantinho tenebroso e recalcado do nosso cérebro que espera que, de cada vez que se actualizam as notícias, o número de mortos tenha aumentado. «Isto ainda vai aos 100 mortos!», pensamos. Não ficamos tristes por não haver mais mortos, tal como não ficamos contentes se os houver, atenção, mas ficamos, à falta de melhor palavra, desiludidos da mesma forma como quando olhamos para um acidente no trânsito e afinal foi só um toque de chapa.

Há uma linha ténue entre informar e o entretenimento. «Morreram 64 pessoas» é informação, mas dizê-lo narrando uma montagem de imagens tristes em câmara lenta com uma música de fundo triste passa a ser entretenimento. Factos com uma roupagem elaborada para puxar à lágrima são entretenimento macabro. Uma das razões pelas quais vemos este tipo de notícias é para pensarmos como seria se fossemos nós a lidar com aquilo. Tínhamos dado meia volta na estrada? Feito marcha-atrás porque o carro tem o motor à frente e é melhor bater de trás sem ficar com o carro parado? Íamos a correr pela berma com um lenço ensopado em água do limpa-para-brisas? Tudo isto nos passa pela cabeça e está provado que assistir a tragédias nas quais há testemunhos de sobreviventes nos pode ajudar a não morrer caso desgraça parecida nos bata à porta. Uma vez vi uma entrevista de um gajo nu, na rua, que tinha saído de casa antes do prédio colapsar com um terramoto, sem tempo de se vestir porque estava a dormir sem roupa. Depois disso, de cada vez que me encontro todo nu na cama, antes de adormecer vou vestir uns boxers porque me lembro dessa situação constrangedora.

Ainda por cima, de noite está mais frio e era uma vergonha aparecer a Judite ao meu lado a fazer uma reportagem quando estou todo mirrado. 

Esta curiosidade mórbida pode justificar o facto de a grande maioria das notícias que fazem as manchetes dos jornais ser negativa. A maioria de nós vive num mundo fixe, sem guerra, sem fome, sem crime. Esquecemo-nos que a maioria do mundo não é assim e ficamos surpreendidos quando vemos notícias negativas, especialmente se forem perto de nós. Imaginem um telejornal em que todas as notícias eram positivas, com coisas boas que tinham acontecido a outras pessoas e feitos fantásticos que outros tinham praticado. Íamo-nos sentir uma merda. Por muito que nos custe, os jornalistas não devem criar ondas de solidariedade porque assim estão a distinguir entre tragédias de maior e de menor valor e a dizer que as pessoas enquanto indivíduos não valem o mesmo. As vidas só valem se forem à palete e se a tragédia for em grande. Porque é que se recolheram toneladas de alimentos para os bombeiros e se assobia para o lado quando nos entregam o saquinho do banco alimentar contra a fome? Todos nós temos as nossas causas e não é isso que está em causa, passe a expressão: o que está em causa é dar-se um litro de água para ajudar um bombeiro ou dar cinco euros para a conta solidária e acharmos que somos as melhores pessoas do mundo e que podemos dar lições de moral aos outros. Fixe, ajudaste. Seja para te sentires bem ou não o que interessa é que ajudaste, mas feitas as contas continuas a trazer muito mais mal ao mundo do que bem, directa ou indirectamente. Todos nós. Somos um capricho do universo que tal como o fogo consome tudo por onde passa e deixa destruição atrás com o nosso consumismo desenfreado.

Por muito que nos queiramos colocar num pedestal de empatia face às aos outros, o que é certo é que o nosso sofrimento enquanto observadores de uma tragédia dura pouco. Todos nos emocionámos ao ouvir aquele homem que perdeu a mulher e as duas filhas, no entanto, ele irá continuar a sofrer o resto da vida e nós, para a semana, já nos esquecemos.

De que serve esta compaixão lusco-fusco quando aquele homem vai passar os aniversários das filhas, da mulher, natais, dias do pai, aniversários de casamento, num sofrimento inimaginável? Nada. Não serve de nada.

Sabermos que não serve de nada deixa-nos impotentes e é isso que nos leva a canalizar a nossa frustração para outros sítios: quem tem culpa? O Governo? Os particulares que não limpam as matas? Os Koalas que gostam de eucaliptos? As pessoas que fazem piadas com tragédias? A CMTV? A Judite? Chamem-me cínico, mas se descobrissem que a única forma de acabar com os incêndios era acabar com os eucaliptos e que, por um efeito borboleta qualquer de uma cadeia de valor que desconhecemos, os iPhones iam aumentar de preço para o dobro devido a isso, queria ver como é que ia ser. Todos queremos culpados desde que não sejamos nós. Todos queremos soluções desde que não tenhamos de abdicar de nada.

Entre o incêndio no prédio de Londres e os de Pedrogão Grande qual é a diferença? Um foi no Reino Unido, outro em Portugal, sim, mas eu, como a maioria dos portugueses, não conhecia ninguém que tenha morrido nem em um, nem no outro. Porque é que me sinto mais triste por terem morrido portugueses do que ingleses? É toda uma escala de percepção de valor subjectiva que colocamos nas vidas alheias. Haverá várias explicações sociológicas e evolutivas que nos fazem sentir mais empatia pelo que nos é, aparentemente, mais próximo e uma delas posso especular que seja «Ui... tão perto! Podia ter sido comigo! Fogo, ainda bem que não foi.». Num lar de idosos, sempre que morre alguém os outros utentes ficam de rastos mesmo que não se dessem bem com quem se foi. Porquê? Por empatia, em parte, mas porque a morte dos outros lhes lembra que os próximos podem ser eles. Num mundo não muito distante, os privilegiados serão imortais e quem tem poucas posses irá continuar a morrer. Nesse sentido, quem viver na imortalidade pode perder toda a empatia e o que faz deles humanos já que a morte dos outros não lhes irá recordar o seu sofrimento ou a sua finitude. Se calhar isso justifica por que é que quem acredita na imortalidade e no paraíso muitas vezes se rebente sem compaixão pelos inocentes que leva consigo.

Todos os anos morre gente nos incêndios, mas desta vez morreram mais. No entanto, para quem perdeu os familiares é igual terem sido só eles ou eles e mais cem. Será, até, uma consolação mórbida o facto de não terem sido os únicos. Parece menos injusto quando morre muita gente da mesma causa já que a pergunta «Porquê a mim?» é feita por muitos e percebe-se a ausência de resposta ou um inevitável «A vida é mesmo assim...». Deixem-me fazer de advogado do diabo com tudo o que isso implica que é dizer coisas com as quais posso não concordar. No verão de 2015 morreram duas pessoas num incêndio que como foram só duas não tiveram direito a tanta cobertura dos media nem a ondas de solidariedade. Logo, não houve ajudas, nem dinheiro, nem nada. Parece injusto, não? Porque é que ajudamos uns e não ajudamos outros? Porque é que só queremos ajudar em tragédias grandes e nas pequenas fingimos que não é connosco? Será porque as grandes acontecem menos vezes e assim não temos de ajudar tantas vezes? Será porque ajudar nas pequenas não nos faz sentir tão bem como ajudar nas grandes? Se assim for, será que a nossa empatia por grandes causas não é egoísta? Lembrem-se que estava a fazer de advogado do diabo! Estou apenas a filosofar em voz alta qual Nietzsche da Buraca que não sabe bem o que diz, mas que gosta de fazer perguntas, mesmo que erradas porque muitas vezes são essas que originam as respostas certas.

Talvez eu seja um cobarde que não gosta de encarar a realidade, mas a verdade é que me faz confusão. Afecta-me a sanidade mental ver horas ininterruptas de desgraças. Se de cada vez que fosse jantar fora o menu do restaurante tivesse fotografias de crianças a morrer à fome em África eu passava a só comer em casa. Todos nós temos mecanismos para lidar com o estado do mundo e um deles é o humor. Depois de ficar com lágrimas nos olhos ao ver desgraças alheias, sacudo isso pensando em piadas horríveis que nem sempre as digo em voz alta. Não que não tenha coragem, mas feito o peso entre a piada e o potencial de ofensa, acho que não valem a pena. Haverá sempre quem não perceba isso e pense que empatia é querer ver todas as imagens horríveis e ir pesquisar fotos dos cadáveres no Google e expressar um sentido «Q'horror!». Outros pensam que empatia é escarrapachar um #PrayForPortugal em bold. Ultrapassa-me essa forma de compaixão.

Não sou religioso e acho que rezar está para ajudar como oferecer meias está para o Natal: é de quem não quer ter muito trabalho.

Percebo que faça sentir melhor a quem reza, mas, à partida, é só mesmo isso que faz. Mas pronto, é um facto que mal, à partida, também não vai fazer... a não ser que exista Deus e o Diabo, e o Diabo fique ciumento de estarem todos a rezar a Deus e decida mandar mais uns raios cá para baixo e incendiar mais umas matas. Não sei, quando estamos no campo da fantasia tudo é possível.

Ver pessoas a chorar os seus mortos na televisão é terrível. Aperta-nos no coração, deixa-nos a voz embargada e inunda-nos os olhos de água para apagar o fogo da tristeza. Não sou neurocientista nem psicólogo, mas diria que o processo no nosso cérebro sempre que se vê uma tragédia alheia é a seguinte:
  1. Sentimos um soco no estômago;
  2. O nosso cérebro envia sinais de desconforto ao nosso corpo;
  3. Choramos e pensamos «Coitados.»
  4. Sentimo-nos boas pessoas por empatizar com a desgraça dos outros.
  5. Sentimo-nos aliviados por não ser connosco.
  6. Achamos que vamos passar a valorizar mais o que temos e a queixarmo-nos menos das coisas pequenas do dia a dia.
Acrescentaria que nos dias de hoje o passo 7 é irmos para o Facebook indignar-nos ou mostrar que somos solidários apenas para mostrar aos outros o quão boas pessoas somos. Diria que o ponto 6 é uma das razões pelas quais somos viciados em ver desgraças alheias. Sim, temos empatia e é bom sentirmo-nos seres humanos decentes que empatizam com o seu semelhante, mas é o sentimento egoísta de que vamos mudar de vida. De que vamos passar a ser mais felizes por termos a sorte de estar vivos. De que vamos dar importância às pequenas coisas da vida e ser mais felizes. É como ver um filme inspirador que achamos que nos vai mudar os hábitos logo de manhã. Não vai e, como tal, precisamos de ver outro para voltar a ter essa sensação de renascimento. É a razão pela qual as pessoas nunca compram só um livro de autoajuda. Precisam daquele sentimento ao acabar o livro de «Vou mudar de vida!». A maioria fica na mesma e precisa desses minutos de "novo eu" outra vez. É o que está na génese daquele pessoal que faz viagens a países para ver os pobrezinhos. Há uns anos estava na moda ir à Índia e levar umas canetas para ajudar as criancinhas e vir de lá com um sentimento de «A minha vida até é bem boa e eu só me queixo...».

Consumimos o sofrimento dos outros. «Pimenta no cu dos outros é refresco.» e «Lembra-te que há sempre quem esteja pior.» são frases ditas amiúde e que comprovam isso. Há estudos que concluem que ao vermos outras pessoas em sofrimento o nosso cérebro processa essas imagens como se o sofrimento fosse nosso, tornando assim a empatia numa dor real. Há outros estudos que dizem que a empatia não é mais do que o nosso cérebro a reproduzir o nosso próprio sofrimento do passado por vermos outros a sofrer. Sentir tristeza por outros pode não ser mais do que estar triste por nos lembrarem que já estivemos tristes. A ser assim, somos todos egocêntricos, mesmo nas alturas em que pensamos estar a ser o mais despojados de ego possível. Há, também, estudos que dizem que a empatia impossibilita a mudança do mundo já que, por exemplo, a empatia nos faz dar várias pequenas esmolas que nunca mudarão nada e que esses pequenos actos de compaixão nos impedem de reunir forças para praticar o bem em grande escala e ter, realmente, impacto no mundo.

Não estou a dizer para ajudarem ou não. Não tenho soluções, só tenho perguntas.

Foi só um desabafo e uma introspecção sobre de onde vem esta coisa que chamamos compaixão que nos parece distinguir de todos os animais. Talvez seja por sermos os únicos animais que sabem que a sua existência é finita. Talvez seja esse medo da morte que faz com que nos unamos apenas quando a vislumbramos. Só é pena é que, bem vistas as coisas, a única forma de sermos um povo unido e solidário é esta merda arder toda de norte a sul.




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