15 de janeiro de 2015

O dia que um polícia me apontou uma caçadeira



Certo dia, há uns 8 ou 9 anos talvez, estava eu com dois amigos parados dentro do carro a conversar. Já era noite, depois de jantar, tínhamos ido tomar café à Damaia e depois ficámos um pouco à conversa dentro do carro, que estava numa zona que era meio descampada ainda, porque estavam a construir uma urbanização nova. Lá estávamos, a falar já não sei de quê, mas como qualquer rapaz de 20 e poucos anos, devia ser de política internacional, história de Portugal e de gajas. Se calhar era só de gajas, confesso que não me lembro, mas é possível. Nisto, um carro da polícia pára ao nosso lado, eu baixo o vidro e digo um "Boa noite" simpático e delicado. Do outro lado oiço o que se assemelhava a um grunhido, digno de um javali a jogar à cabra cega. Eu meto a cabeça e fora e pergunto "Diga?" e então oiço as palavras mágicas.

"Tudo fora do carro já!!!"

Nós olhámos uns para os outros por momentos, meio embasbacados com aquela abordagem fofinha da parte dos senhores agentes. Algo muito estranho, dada a fama meiga e simpática que todos eles têm. Como bons cidadãos, obedecemos e saímos prontamente do veículo. Os polícias fazem o mesmo que nós, mas de forma apressada, com caçadeiras nas mãos que prontamente nos apontaram à cabeça, a dois metros de distância. Neste momento só não soltei um cocózinho porque o meu ânus se contraiu mais que uma cara de um bebé a provar limão pela primeira vez. Olhámos uns para os outros novamente, de ar estupefacto, a tentar perceber qual a razão que nos poderia causar a morte, caso um dos polícias tivesse um ataque de nervosismo ou com um espasmo de uma cólica decidisse apertar o gatilho.

- O que se passa? - perguntei eu, o mais calmamente possível.
- O que é que estão aqui a fazer? - pergunta um dos polícias sem nunca baixar a arma.
- Estamos a conversar... - diz um dos meus amigos.
- E porque é que estão aqui? - continua o polícia no seu tom brusco.
- Não é um local público como outro qualquer? - pergunto eu inocentemente.

Nesta altura um dos meus amigos diz algo ao outro e ao fazê-lo inclina-se um pouco para lhe falar mais perto do ouvido. Um dos polícias chega-se à frente e volta a apontar a caçadeira, desta vez a 1 metro de distância, brandindo-a como uma espada enquanto grita em plenos pulmões "Afastem-se já! Mostrem a vossa identificação!". Mais uma vez, houve possibilidade de aguaceiros e uma pinguinha nas cuecas, não fosse estarmos desidratados dos suores frios. Nenhum deles tinha identificação consigo o que começou a gerar ainda mais alguma tensão. Eu como estava de carro tinha tudo comigo e meti a mão ao bolso, em câmara lenta, não fossem eles confundir a minha carteira preta com velcro da Billabong com uma arma futurista. Dei-lhes o BI e os documentos da viatura, só para verem que o excepcional Renault 19 a cair de podre era realmente minha propriedade. Do meu pai, vá, que o polícia ao ver os documentos perguntou:

- Quem é o senhor José Duarte?
- A minha mãe diz que é o meu pai... - eu já na altura tinha a mania que era engraçado.
- Bom... deixemo-nos de piadas se faz favor. Vocês têm em vossa posse algo que vos comprometa?
- Não. - dizemos todos a uma só voz.
- De certeza?
- Sim, de certeza.
- E se eu vos revistar a vocês e ao carro?
- Força, não temos nada. - digo eu confiante da nossa inocência.

Eles não nos revistaram, mas andaram com uma lanterna a tentar perceber pelas janelas se havia algo ilícito lá dentro, mas só viram papéis e bilhetes da EMEL. Não revistaram o carro que para isso é preciso mandato e não quiseram, devido a um erro técnico, arriscar perder a oportunidade de prender três criminosos procurados internacionalmente.

- Bom, não têm mesmo nada? Umas ganzinhas, nada? Se tiverem não há problema nenhum, que a gente fuma isso noutro dia. - diz um dos polícias já descontraído.
- ...! - dissemos nós, achando estranho o facto do polícia empregar o verbo fumar na primeira pessoa do plural.
- Nós andamos aqui é à procura de quem esteja a vender. Vocês não sabem que esta zona é perigosa? - continua ele num tom paternal.
- Nós moramos aqui perto, tínhamos acabado de sair ali do café, também não íamos ficar muito tempo.
- Pois é que ainda vos aparece aqui um preto e vos dá um tiro de caçadeira pelo vidro para vos roubar o carro, que estes carros são bons para mandar contra as montras das ourivesarias.

Como nunca se acusa um polícia de estar a ser racista, nós sorrimos e dissemos um "Pois..." em uníssono. Nesta altura já as caçadeiras estavam guardadas e já tudo parecia uma reunião de amigos de longa data. Lá nos deram mais alguns conselhos, entre os quais de irmos para casa.

Deram-nos um aperto de mão e pediram desculpa de terem entrado assim tão à bruta, mas um pedido de desculpas à Tomás Taveira, que se via que era irónico. 

Nós voltámos para dentro do carro e quando o deles desapareceu no horizonte desatámos a rir descontroladamente. Rimos até nos faltar o ar e termos as faces cheias de lágrimas. Foi da descarga de nervos, mas principalmente pela moca de ganza que tínhamos. Sim, 15 minutos antes da polícia chegar nós tínhamos fumado o último bocado de erva! Desta forma não se pode considerar que tenhamos mentido aos senhores agentes quando afirmámos que não tínhamos nada. Só mesmo no sangue. Os polícias devem ter olhado para os nossos olhos vermelhos e raiados e a saber claramente que nós lhes estávamos a esconder alguma coisa. Vocês não sabem o que é ter auto-controlo, até estarem em frente à polícia, com armas apontadas e a sentir a moca a chegar de fininho, enquanto têm que dizer no tom mais sério às autoridades que está tudo em conformidade com a lei. Fomos autênticos monges budistas em termos de paz interior.

No fim, já a irmos para casa, um dos meus amigos sugeriu que a melhor forma de evitar todo este aparato, caso voltasse a acontecer um dia em que tivéssemos mesmo algo ilícito connosco, seria e passo a citar "começarmos todos a mamar-nos da boca", que a polícia passava e pensava "Ah, é paneleiros, deixa-os estar". Esse meu amigo ou é um génio criminoso da dissimulação ou tem algo para nos contar que nunca disse.

PS: Eu já deixei de fumar estupefacientes há muito tempo, já aqui escrevi sobre isso. Agora sou um gajo sério e só me embebedo.




Gostaste? Odiaste? Deixa o teu comentário: