Estamos na silly season, mas Portugal anda preocupado com assuntos muito sérios: os incêndios, burkinis e, claro, o caso de Ponte de Sor protagonizado por dois iraquianos filhos de um diplomata. O que podia ser apenas um caso de pancadaria na noite, algo que acontece diariamente, especialmente com porteiros de discoteca, tornou-se num evento mediático. Porquê? Porque os media decidiram agarrar nisto como bons abutres que são, ávidos de cliques e de audiência e, mal viram as keywords "iraquianos", "filhos de diplomata", "agressão", "coma", "koppus", ficaram malucos ao perceberem que tinham ali as tetas de uma vaca leiteira. Uma espécie de caso Meco, mas versão Verão de 2016, com artigos baseados em nada, e reconstituições bacocas. Numa dessas reconstituições feita por um canal de televisão, resolveram usar rapazes betos como figurantes para ilustrar o grupo envolvido em desacatos com os iraquianos! Ri-me. Vocês viram a fotografia deles, não viram?
Digamos apenas que para ser minimamente realista deveriam ter utilizados figurantes da Margem Sul ou da Linha de Sintra.
É que, parecendo que não, estes detalhes acabam por moldar a opinião pública. Esta história está a deixar o comum português, preconceituoso de origem, confuso:
- Por um lado, acha óbvio que os iraquianos são culpados porque, bem, são iraquianos, muçulmanos e filhos de diplomatas. Razões mais do que suficientes para a condenação;
- Mas, por outro lado, o rapaz que apanhou nas trombas usa boné e brincos e todos sabemos que isso é razão mais do que suficiente para merecer levar nas ventas como gente grande. É isso e mangas à cava.
Vivemos uma época estranha, em que os julgamentos e os apedrejamentos na praça pública voltaram, mas em que os calhaus foram substituídos pelos comentários nas redes sociais, esse bonito tribunal virtual cheio de juízes de sofá. Todos julgamos e decidimos de quem é a culpa sem saber os factos. Também me incluo nesse grupo, atenção. Todos nós temos a convicção de quem é a culpa no caso do desaparecimento da Maddie, todos nos convencemos de que o Sócrates é culpado, e há muitos que mesmo com provas e condenações se convencem da inocência dos culpados, como no caso do Carlos Cruz. A presunção de inocência é só no papel, mas a diferença é que há uns que apesar de terem a sua teoria, não se negam a conhecer mais sobre os casos e a colocar todos os cenários possíveis em cima da mesa.
Acho giro observar a opinião pública a formar-se nestes casos em que ninguém esteve lá, mas todos sabem o que aconteceu. Em que todos nos tornamos especialistas em linguagem corporal e conseguimos perceber ao olhar para a entrevista dos dois iraquianos que eles estão a mentir e os únicos remorsos que têm é não terem dado pelo menos mais um pontapé na nuca do Rúben. «Iraquiano a falar bem? Ui, aquilo foi tudo estudado por um advogado! Vê-se logo que é culpado!», mas, caso ele falasse mal, haveria gente a dizer «Ui! Nem sabe falar! Deve ser pouco mitra, deve! Nem teve educação em casa!».
Imaginem que o rapaz que levou no focinho e todo o seu grupo era constituído por ciganos e que os gémeos iraquianos eram os manos Guedes.
Era diferente, não era? Imaginem que o Rúben e os amigos eram pretos e que os gémeos iraquianos eram antes filhos de um diplomata suíço. A opinião pública era capaz de ser diferente, não? Aliás, se os gémeos iraquianos tivessem um negócio de kebabs e tivessem corrido o grupo à catanada no focinho, desde que o grupo fosse de pretos, se calhar eram apelidados de heróis. Calma, não estou a defender os iraquianos! Gosto pouco de filhos de diplomatas que conduzem sem ter carta, e sob o efeito do álcool, e que viveram toda a vida numa bolha de proteção e de regalias que os faz crer que são impunes e imunes às intempéries que assolam os comuns e restantes mortais. Só acho que esta história tem mais camadas:
Cenário 1:
Os iraquianos chegaram ao bar e começaram a dizer que o que faz falta a Portugal é um Saddam, irritando os portugueses porque toda a gente sabe que o melhor ditador do mundo foi Salazar. Palavra puxa palavra, palavrão puxa palavrão, o grupo do Rúben faz peito aos iraquianos e gera-se a confusão. Imbuídos pelo espírito acéfalo das massas, e pelo álcool que não deviam beber por que são menores, mas que nenhum dono que tem um estabelecimento chamado Koppus vai recusar servir, afiambram nos iraquianos. Os iraquianos, pouco habituados a apanhar no focinho nos colégios privados onde andaram, ficam melindrados e soltam o terrorista psicopata que há em si. Vão a casa contar ao papá o que aconteceu, mas o papá está a dormir e não os pode ajudar. Pegam no carro e vão percorrer a cidade em busca de alguém do grupo para se vingarem. Encontram o Rúben e tratam-no com o mesmo respeito que têm pelas mulheres no Iraque. Neste caso, foram os iraquianos a iniciar a confusão e a cometer o crime final, mostrando que são uns anormais de primeira e que deviam ser punidos com a obrigação de ir à missa católica todos os domingos às 7 da manhã.
Cenário 2:
Os iraquianos entram no bar, na boa. Toda a gente olha de lado porque pensam que eles vão tentar vender rosas. Dizem «Vão-se embora, seus monhés! Agora já não se vendem rosas, só selfie-sticks!» e gera-se a confusão. Os iraquianos defendem-se das ofensas e engalfinham-se com o grupo de rapazes mitras. Levam na boca porque estão em desvantagem e vão para casa. Voltam ao bar para encontrar as chaves de casa e, quando estão de carro a passear pela cidade encontram o Rúben sozinho e, ainda na raiva do momento, decidem sair do carro e vingar-se à força do petardo de força nas ventas. Perdem o controlo e vão longe de mais e quase matam o rapaz. Neste caso, os iraquianos são apenas culpados de terem ido longe de mais, já que foi o Rúben e o grupo a iniciar a confusão e, parecendo que não, mereciam levar na boca, ainda que com menos intensidade.
Cenário 3:
São todos uma cambada de putos estúpidos que fazem da vida envolver-se em arrufos na noite. A culpa é de todos, especialmente dos pais que não lhes deram educação em casa. Era mete-los todos numa cela e chamar a Ana Malhoa e o Carlos Costa para um dueto de 24 horas como tortura.
Já me vi envolvido em cenas de pancadaria em legítima defesa em que tive zero culpa e comecei a apanhar sem saber de onde. Entrei em piloto automático e dei por mim em cima do gajo a tentar transformar-lhe a cara em Cerelac com grumos de ketchup e, se não me viessem parar, não sei se teria tido o discernimento de voltar a mim antes que corresse tudo muito mal. Se nesse caso o rapaz tivesse ido ter com o criador quem se lixava era eu, não era? E, no entanto, que culpa tive? Nenhuma. Só a culpa de não ter treino especializado para situações de stress que me conferissem capacidades de saber onde parar e, mesmo nas escolas da Buraca de da Damaia, isso ainda não é disciplina obrigatória. Portanto, eu lixava a minha vida por causa de um gandim que mereceu levar na tromba e que fazia da vida andar à porrada na noite e, segundo soube depois, com um grande cadastro criminal. Claro que aqui é diferente porque eu não tive tempo para pensar, não peguei no carro e voltei atrás já de cabeça fria e com tudo premeditado para o apanhar. Mas as coisas podem descontrolar-se e nesse caso a culpa é mais complicada de definir. A única coisa que sei é que aquele gajo mereceu ter ido parar o hospital.
A violência não resolve nada, mas às vezes ajuda.
O grande catalisador de opiniões neste caso é a imunidade diplomática. Claro que ela, num país como Portugal, é uma palhaçada, ainda mais para os filhos e em casos destes onde tudo aponta para um crime grave, com ou mais atenuantes. A imunidade foi inventada para diplomatas que trabalham em países que não respeitam muito o estado de Direito nem os direitos humanos, não foi para filhos mimados se armarem em campeões. A sorte de Portugal é que o Rúben não faleceu, caso contrário via-se obrigado a passar a batata quente entre tribunais, ministério, e procuradoria geral a ver quem tinha tomates de lhes retirar a imunidade. As relações iriam ficar tensas entre Portugal e o Iraque e se o Iraque ficou na merda depois de ser invadido pelos Estados Unidos, sob falsos pretextos, imaginem como ficava se agora fosse invadido por Portugal com um batalhão de mitras com ancinhos.
Dito isto, os iraquianos têm culpa. Claro. Podem é não ser os únicos a tê-la e era giro que os media se preocupassem em saber os factos antes de encaminhar a carneirada toda para o mesmo lado. O jornalismo deve informar, não deve fazer de cão pastor das massas desinformadas. Ainda por cima assim é fácil e nem lhes devia dar gozo. Ainda se o Rúben fosse um refugiado Sírio e os gémeos andassem num colégio privado e na JSD, sempre era um desafio maior. Resta-nos tirar o que de positivo há nesta história que é toda uma nova premissa para refrescar o reportório de anedotas portuguesas: «Um iraquiano e um português entram num bar...».