As mães nunca precisaram de grande poder de argumentação pois bastava aquele olhar de quem tenta matar cabras com o olhar para que obedecêssemos, sem questionar a autoridade vigente lá de casa. Até os nossos pais sabiam que quando lhes pedíamos alguma coisa única resposta certa era «Já perguntaste à tua mãe?». Os homens mandam no mundo, mas as mulheres mandam lá em casa! Os primeiros não têm feito um grande trabalho no seu papel, mas temo que se fossem as mães a mandar no planeta vivêssemos numa ditadura em que todas as esquinas estão revestidas a borracha e onde não havia referendos, já que as mães têm sempre resposta a todas as perguntas. Lembro-me de ser criança e tentar enveredar por um encadeamento infinito de "porquês", a tentar contra-argumentar, e chegar sempre a três resultados possíveis como alegações finais da minha mãe:
- Porque sim
- Porque eu sou tua mãe e eu é que sei.
- Porque faz cancro.
O fluxo de conversa era mais ou menos este:
- Posso fazer uma tatuagem do Bolicao?- Não. Isso faz mal.
- Faz mal porquê?
- Porque sim.
- Tu dizes que porque sim não é resposta!
- Faz mal porque eu sou tua mãe e eu é que sei.
- Mas porquê?!
- Porque faz cancro.
Para a minha mãe, tudo fazia cancro quando eu era pequeno: eram as tatuagens do Bolicao; os chupa-chupas Push Pops; os chupões autoinfligidos nos braços; tirar as crostas das feridas; roer as peles dos dedos ou as unhas; coçar borbulhas das melgas até fazer ferida; comer o queijo que saía da tosta e ficava mais queimado; passar muito tempo em frente ao computador; beliscões; escrever a caneta nas mãos ou nos braços; engolir pastilhas; meter o dedo no nariz; ver televisão de perto; ver televisão de longe e esforçar os olhos; ouvir música muita alta com auscultadores; olhar directamente para o sol; respirar o cheiro da gasolina na estação de serviço; mergulhar de chapa na piscina; comer torradas queimadas e não usar protector solar, idem. Sei que nestas últimas até é verdade, mas na altura era difícil acreditar e, tal como na história de Pedro e o Lobo, desconfiava que se uma era mentira, as outras todas também seriam, mas, pelo sim, pelo não, fazia sempre os trabalhos de casa, não fosse ficar com um tumor no cérebro. Quando comecei a chegar à idade em que tinha a mania que era esperto – idade em que ainda me mantenho – dizia «Roer as unhas faz cancro? Então para que é que fumam?», fazendo alusão à hipocrisia de nessa altura ambos os meus pais fumarem e darem-me conselhos oncológicos sobre os perigos de tirar crostas e roer as unhas dos dedos dos pés. Em vez de perceberem que estava ali um potencial campeão mundial de contorcionismo, preferiram cortar-me as asas e as unhas.
Nessa altura, o cancro não metia muito medo já que eram, ou pareciam, poucas as pessoas a receber a sua visita. Ia-se sabendo de um ou outro caso, mas nunca muito próximo para se ter a certeza se a Dona Almerinda tinha morrido por fumar durante 70 anos ou por fazer demasiadas tatuagens do Bolicao. Ficava sempre no ar a incerteza. Por isso, o cancro era uma espécie de criatura mítica, um homem do saco 2.0, que os pais podiam usar sem que se tornasse demasiado próximo. Como na minha casa Deus não existia, era preciso um bicho papão mais real para me meter na linha. «Isso faz cancro» era o «Deus castiga» para os pais ateus. Dizer a uma criança descrente que Deus castiga é o mesmo que dizer-lhe que vem aí um unicórnio dar-lhe uma marrada.
O que é certo é que vamos crescendo e percebendo que quase tudo faz cancro e que mesmo que leves uma vida saudável e evites tudo o que é cancerígeno, ele pode bater-te à porta. O cancro nunca podia entrar num episódio do «E se fosse consigo?» porque o cancro não discrimina ninguém e não é por isso que tem boa fama. Eh lá… que isto está a ficar demasiado sério e tétrico. Voltando a roer as unhas dos pés: sou só eu que não meto um corta-unhas nos pés há anos? Aquilo quando um gajo sai do banho e está mole tira-se facilmente sem qualquer utensílio! E nas unhas das mãos é sempre um stress, sendo destro, quando tenho de cortar as da mão direita. Pareço um daqueles gajos nos anúncios de prevenção rodoviária da DGV com a música Aimee Mann. Se por acaso tenho de cortar as unhas em dias de ressaca é impossível! Tremo por todos os lados e mais vale roer e depois limar numa parede porosa. Já sei por que é que o meu avô com Parkinson tinha sempre as unhas compridas. Pensava que era para o estilo ou para cortar queijo e descascar laranjas e, afinal, não.
A minha mãe, como todas as mães, tem conhecimentos avançados de medicina. A minha mãe é como o Google em que quaisquer sintomas que lhe dês a resposta é sempre cancro. Estou certo que a minha mãe poderia roubar o lugar à Maya e à Maria Helena a fazer biopsias por telefone e sem precisar de cartas de brincar compradas no Papagaio Sem Penas. A minha mãe sempre foi uma mãe galinha e dizia-me, entre muitas outras coisas, para não me esforçar demasiado na natação. Certamente, com medo de que eu ganhasse as provas todas e ficasse todo gostoso e tivesse as miúdas todas atrás de mim devido ao meu corpo de nadador. Sempre quis que eu as engatasse pelo meu intelecto que é o que, aos 33 anos, me resta. Sim, já fiz paz comigo mesmo e com o facto de nunca mais voltar ver os meus abdominais a não ser que apanhe uma daquelas doenças que nos emagrece muito antes de morrermos. Sinto que este texto está a resvalar para o cancro, novamente. É melhor ficarmos por aqui até porque, tal como disse, é chato crescer e descobrir que quase tudo faz cancro. Até o sexo oral desprotegido – que é a única forma de se fazer bom sexo oral – provoca cancro. Epá, tirem-me as tatuagens do Bolicao e as torradas queimadas, mas não me tirem cunnilingus sem papel de celofane e, já agora, se é para me fazerem um felácio com preservativo, mais vale irmos ver um filme.
- Faz mal porquê?
- Porque sim.
- Tu dizes que porque sim não é resposta!
- Faz mal porque eu sou tua mãe e eu é que sei.
- Mas porquê?!
- Porque faz cancro.
Para a minha mãe, tudo fazia cancro quando eu era pequeno: eram as tatuagens do Bolicao; os chupa-chupas Push Pops; os chupões autoinfligidos nos braços; tirar as crostas das feridas; roer as peles dos dedos ou as unhas; coçar borbulhas das melgas até fazer ferida; comer o queijo que saía da tosta e ficava mais queimado; passar muito tempo em frente ao computador; beliscões; escrever a caneta nas mãos ou nos braços; engolir pastilhas; meter o dedo no nariz; ver televisão de perto; ver televisão de longe e esforçar os olhos; ouvir música muita alta com auscultadores; olhar directamente para o sol; respirar o cheiro da gasolina na estação de serviço; mergulhar de chapa na piscina; comer torradas queimadas e não usar protector solar, idem. Sei que nestas últimas até é verdade, mas na altura era difícil acreditar e, tal como na história de Pedro e o Lobo, desconfiava que se uma era mentira, as outras todas também seriam, mas, pelo sim, pelo não, fazia sempre os trabalhos de casa, não fosse ficar com um tumor no cérebro. Quando comecei a chegar à idade em que tinha a mania que era esperto – idade em que ainda me mantenho – dizia «Roer as unhas faz cancro? Então para que é que fumam?», fazendo alusão à hipocrisia de nessa altura ambos os meus pais fumarem e darem-me conselhos oncológicos sobre os perigos de tirar crostas e roer as unhas dos dedos dos pés. Em vez de perceberem que estava ali um potencial campeão mundial de contorcionismo, preferiram cortar-me as asas e as unhas.
Nessa altura, o cancro não metia muito medo já que eram, ou pareciam, poucas as pessoas a receber a sua visita. Ia-se sabendo de um ou outro caso, mas nunca muito próximo para se ter a certeza se a Dona Almerinda tinha morrido por fumar durante 70 anos ou por fazer demasiadas tatuagens do Bolicao. Ficava sempre no ar a incerteza. Por isso, o cancro era uma espécie de criatura mítica, um homem do saco 2.0, que os pais podiam usar sem que se tornasse demasiado próximo. Como na minha casa Deus não existia, era preciso um bicho papão mais real para me meter na linha. «Isso faz cancro» era o «Deus castiga» para os pais ateus. Dizer a uma criança descrente que Deus castiga é o mesmo que dizer-lhe que vem aí um unicórnio dar-lhe uma marrada.
Aliás, Deus tem muito em comum com os unicórnios: nunca ninguém os viu e ambos aparecem em livros de ficção.
O que é certo é que vamos crescendo e percebendo que quase tudo faz cancro e que mesmo que leves uma vida saudável e evites tudo o que é cancerígeno, ele pode bater-te à porta. O cancro nunca podia entrar num episódio do «E se fosse consigo?» porque o cancro não discrimina ninguém e não é por isso que tem boa fama. Eh lá… que isto está a ficar demasiado sério e tétrico. Voltando a roer as unhas dos pés: sou só eu que não meto um corta-unhas nos pés há anos? Aquilo quando um gajo sai do banho e está mole tira-se facilmente sem qualquer utensílio! E nas unhas das mãos é sempre um stress, sendo destro, quando tenho de cortar as da mão direita. Pareço um daqueles gajos nos anúncios de prevenção rodoviária da DGV com a música Aimee Mann. Se por acaso tenho de cortar as unhas em dias de ressaca é impossível! Tremo por todos os lados e mais vale roer e depois limar numa parede porosa. Já sei por que é que o meu avô com Parkinson tinha sempre as unhas compridas. Pensava que era para o estilo ou para cortar queijo e descascar laranjas e, afinal, não.
A minha mãe, como todas as mães, tem conhecimentos avançados de medicina. A minha mãe é como o Google em que quaisquer sintomas que lhe dês a resposta é sempre cancro. Estou certo que a minha mãe poderia roubar o lugar à Maya e à Maria Helena a fazer biopsias por telefone e sem precisar de cartas de brincar compradas no Papagaio Sem Penas. A minha mãe sempre foi uma mãe galinha e dizia-me, entre muitas outras coisas, para não me esforçar demasiado na natação. Certamente, com medo de que eu ganhasse as provas todas e ficasse todo gostoso e tivesse as miúdas todas atrás de mim devido ao meu corpo de nadador. Sempre quis que eu as engatasse pelo meu intelecto que é o que, aos 33 anos, me resta. Sim, já fiz paz comigo mesmo e com o facto de nunca mais voltar ver os meus abdominais a não ser que apanhe uma daquelas doenças que nos emagrece muito antes de morrermos. Sinto que este texto está a resvalar para o cancro, novamente. É melhor ficarmos por aqui até porque, tal como disse, é chato crescer e descobrir que quase tudo faz cancro. Até o sexo oral desprotegido – que é a única forma de se fazer bom sexo oral – provoca cancro. Epá, tirem-me as tatuagens do Bolicao e as torradas queimadas, mas não me tirem cunnilingus sem papel de celofane e, já agora, se é para me fazerem um felácio com preservativo, mais vale irmos ver um filme.
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