27 de agosto de 2015

Aventura em Marrocos (3/4): Meknès



A epopeia marroquina continua, depois das cidades de Chefchaouen e Marraquexe, a próxima paragem seria Meknès, a capital Berbere. Não investigámos muito sobre esta cidade, foi mais por posicionamento geográfico e porque nos disseram que ir a Fez era complicado e pouco seguro. A viagem desde Marraquexe foi tranquila, cerca de 500 quilómetros mas todos em autoestrada. Como já falei nas duas primeiras partes, o trânsito em Marrocos é um caos. Parece que todos os condutores estão aflitos para ir ao WC e que tiraram a carta na Lusófona, por equivalência à de burro. Estou a brincar, eles nem parecem ter carta. Seria de esperar, por isso, que na autoestrada fosse igual e que andassem todos a acelerar como se o amanhã não fosse chegar, mas não. Foram muitos raros os carros que vimos a mais do limite de velocidade. Obviamente, que tal não acontece por respeito e civismo, mas por medo dos radares da polícia que eram mais do que muitos. Parar na berma é outra história. Qualquer carro pára e sem se encostar muito, não vá o raile lateral riscar o carro todo amolgado. Param ali com duas rodas na berma e as outras duas no meio da estrada e quem quiser que se desvie, que isto é uma terra em que é cada um por si e Alá sabe de todos. Vimos, inclusivamente, um senhor com um camião parado dessa forma a rezar com um tapete em frente ao veículo. Quando a vontade, ou as amarras da religião, apertam, é parar e fazer o serviço sujo, seja onde for.

Lá chegámos a Meknès, a meio da tarde, e desde logo vimos que era uma cidade diferente. Parecia mais pobre, com mais pedintes a cada semáforo e rotunda desorganizada. Havia azáfama na rua, uma praça grande com tendas montadas e música a tocar. Turistas não vislumbrámos nenhum e sentimos mais aqui do que em qualquer outra cidade, que as pessoas nos olhavam. Não de lado, nem de qualquer forma estranha. Apenas olhavam a diferença que por ali passava. Estacionámos, mais uma vez num parque de terra batida improvisado e fomos com as malas, fintando vários guias que nos queriam levar a ver a cidade, mesmo com os nossos pertences aos ombros. Subimos uma estrada e atravessámos a praça central a pé.

Sem querer, dei um encontrão a uma senhora e ela fitou-me intensamente através da sua burka. Não percebi se me estava a rogar pragas ou a fazer olhinhos sedutores.

Chegámos ao riad, onde fomos recebidos por um senhor simpático ofereceu um chá de menta e nos falou um pouco sobre a história da cidade, do edifício que agora hospedava turistas e que havia sido uma casa de uma família de um senhor com quatro mulheres e vinte e sete filhos. Se eu morasse ali também teria quatro mulheres porque a casa era grande e uma pessoa não chegava para a limpar. Não querendo estereotipar, o senhor tinha uns certos tiques e maneirismos de quem não come porco por questões religiosas, mas que gosta de um bom salpicão à martelada. Pensei que deve ser tramado ser gay naquele país, ter que o esconder e ter uma vida dupla a vida inteira. Nos países como Marrocos, o armário está fechado por fora a sete chaves. Claro que deve ter as suas vantagens, pois ao menos já sabem mais ou menos com o que contam na hora do sexo, já os hetero nunca sabem o que está por baixo daquelas burkas. Se calhar a desilusão não é tão grande como nos países ocidentais depois de tirarem a maquilhagem, os soutiens almofadados e as calças push-up coladinhas ao pacote.

Subimos ao quarto e fomos ao terraço ver a vista. O sol já estava baixo e iluminava os telhados brancos das casas degradadas que se amontoavam até à linha do horizonte. Visto dali parecia uma favela com algum carisma que dava vontade de explorar. Tomei banho e enquanto os restantes ainda se arranjavam, fui lá abaixo perguntar algumas informações ao senhor da recepção: sítios a visitar, restaurantes e essas banalidades turísticas. Perguntei-lhe, também, se era seguro andar ali à noite e ele disse que sim, «Safe. No dangerous. No problem» assegurou-me. Vim até à porta do riad fumar um cigarro e observar as pessoas que passavam sem tanta pressa como nas outras cidades. Fui logo abordado por um senhor de meia idade, que me perguntou se já tinha ido à sauna. Disse que não e ele insistiu para que eu fosse no dia seguinte, que era mesmo em frente e valia o dinheiro. Devia ser o negócio da prima, como sempre. Nisto, vejo o senhor do riad a vir também à porta escutar a conversa e, ao perceber isso, o senhor com fetiche de sauna foi-se logo embora. O outro chamou-me para dentro e disse:

- Don't talk to him. Dangerous people.
- You said no danger when I asked you...
- Yes, but they ask you if you want to smoke drugs. A lot of people like him. No good people. Dangerous.

Não fiquei muito descansado mas relativizei e calculei que o único perigo fosse se algum de nós decidisse ir com ele para algum beco com o intuito de querer comprar um recuerdo de THC. Ainda assim deveria ser menos perigoso do que comprar comida de rua, mas já lá vamos.

Fomos jantar a um dos restaurantes da praça central, que servia grelhados no carvão, já que de tajines e couscous já estávamos todos nauseados. Pedimos uma espécie de grelhada mista com várias carnes e batata frita. O senhor traz a comida e um pratinho com ketchup com o dedão grande lá mergulhado. Toda a gente sabe que roer as unhas com ketchup é muito mais saboroso. Nem liguei. Havia espetadinhas de frango que estavam razoáveis já que frango não dá para estragar muito. Havia almôndegas de uma carne que parecia ser borrego e que também estavam aceitáveis e depois havia o ex libris do prato. A salsicha no topo do bolo. Salsicha de borrego, meus amigos. Meti uma à boca, salvo seja, com um entusiasmo de quem estava com saudades de enchidos, mas num sentido diferente das do senhor do riad. Quando começo a mastigar só não me vomitei porque sou um gajo rijo. Nojo. Ninguém comeu a não ser o André que no meio do pão, alface, batata frita e ketchup dizia que conseguia disfarçar o sabor. Nem as dezenas de gatos pequenos e esfomeados que povoavam a cidade e estavam junto às mesas do restaurante, à espera de que alguém lhes desse comida, gostaram daquilo. Os gatos também são uns esquisitinhos da merda, diga-se, mas gostaram de todas as outras carnes menos da salsicha. Ao menos ficámos descansados porque tivemos quase a certeza de que não eram de ratazana.

Fomos dar uma volta pelas ruas da medina cujas lojas já estavam todas a fechar mostrando que a cidade não tinha a energia de Marraquexe. Voltámos à praça, que parecia toda ela uma Feira da Ladra mas em pior. Havia de tudo. Parecia que estavam ali todos os vendedores de bujigangas do Bairro Alto que se aproveitam do álcool no sangue da juventude para vender óculos, chapéus do SWAG e anéis com luzinhas que só funcionam dois segundos e meio. Optámos por descer a rua e fomos dar uma zona onde se vendia fruta, com várias bancas a apregoar o seu produto. Ao subirmos, uma menina vem tentar vender-nos lenços de papel. Uma menina com não mais de três anos, de vestido rosa sujo e com uma tristeza no olhar que nunca deveria estar em alguém daquela idade. Estendeu-nos a mão e pediu um dirham, cerca de dez cêntimos. Por muito que me tenha custado, não dei nada. Primeiro, porque é estar a dizer-lhes que afinal vale a pena estar a pedir na rua em vez de estarem em casa a dormir; segundo, porque depois podem aparecer mais e não se pode dar a todos; terceiro, porque sou um forreta insensível. A Xana e a Rita, mulheres e por isso menos sociopatas, deram-lhe treze dirhams. Há muito tempo que não via uma criança tão feliz e há muito tempo que a felicidade de uma criança não me deixava tão triste. Foi com as moedas nas suas pequenas mãos, a correr o máximo que podia e a gritar em plenos pulmões «Maman, maman!» para mostrar a sua conquista à mãe. O irmão, uns quatro ou cinco anos mais velho, empurrou-a e disse-lhe que nos viesse pedir mais. Ela não veio e veio ele. Apesar da insistência não lhe demos nada. Pediu, pediu e insistiu. Veio atrás de nós a pedir durante uns quinhentos metros. A implorar. A humilhar-se, quando quem devia estar envergonhado éramos nós por fazermos parte da fatia do mundo que vive bem e se queixa enquanto as restantes, a maior parte, está na merda. Crianças sem culpa, sem hipótese de escolherem o que querem ser quando forem grandes até porque muitas não o chegam a ser. Crianças sem oportunidades, só porque nasceram no local errado à hora errada. A culpa é de todos nós e daqueles pais, que nunca o deviam ser e que fazem com que os seus filhos andem ali na rua a pedir àquela hora. O pai provavelmente passa do dia no café a beber chá e a ver a bola. Não sei se a educação tem grandes custos em Marrocos, mas mesmo que seja gratuita, acredito que muitos pais prefiram que os filhos peçam esmola ou trabalhem, do que tenham a ilusão de que podem vir a ser doutores ou engenheiros. Aquelas crianças não tinham o sorriso rasgado e a alegria que se vê em muitas outras de países pobres mas que parecem sempre felizes. O olhar daquelas crianças não reflectia as luzes da cidade.

Quando nos livrámos do puto ranhoso, pude sacar finalmente da carteira para comprar futilidades. Fui comprar uma espécie de nougat que havia à venda numa banca de rua. Levei um saco com diferentes variedades e fomos para o terraço do hotel beber o nosso vinho e jogar uma cartada. Vou todo pimpão para provar a minha compra, meto um à boca e trinco. Mastigo e sinto algo demasiado duro até para um nougat. Voltei a trincar e a sentir. «Deve ser um vidro!» digo eu na brincadeira enquanto levo os dedos à boca para ver do que se tratava. Qual não é o meu espanto quando tiro de lá um prego ferrugento! Um prego! Nem era um parafuso, que toda a gente sabe que escorrega muito melhor pela tripa. Era um prego que se eu o engolisse era menino para me fazer sofrer durante uns dias antes de me enviar para junto do criador.

O marroquino deve ter ouvido dizer que os portugueses tinham uma comida que se chamava "Prego no pão" e quis fazer cozinha de fusão.

Olhem aqui o bicho que quase fez com que este vosso menino falecesse:


No dia seguinte, levantámo-nos, tomámos o pequeno almoço e fomos embora, para chegarmos cedo e aproveitarmos a praia e a piscina da nossa última paragem. Chegámos ao carro e somos novamente abordados por um guia que queria que fossemos com ele ver a cidade antes de irmos embora. Tinha cabelos brancos e um sorriso honesto. Dissemos que não podíamos, que tínhamos mesmo de ir embora e ele insistiu mais algumas vezes, mas sempre com respeito e simpatia. Percebeu que não iria mesmo conseguir demover-nos e então pediu-me algo: pediu-me canetas! Disse que tinha muitos filhos e que não tinham com o que escrever para estudar. Só tinha uma, uma Bic sem tampa, e dei-lha de bom grado. Ele agradeceu emocionado pelo que chamou «um regalo de Portugal». Como é que se consegue continuar a ser rei num país em que há crianças que nem uma caneta têm para estudar? Bem, é exactamente assim que se consegue ser rei: com educação precária e religião castradora.

Como sempre, aqui ficam mais umas fotografias manhosas que tirei com o telemóvel e amanhã a saga termina em Moulay Bousselham, uma aldeia no litoral. Fiquem atentos que tem histórias giras para contar. É muito parecida com Portugal, mas só ao nível de nos tentarem enganar nos restaurantes.








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