11 de agosto de 2014

O dia em que dormi numa casa de ocupas punks



Estava eu a fazer uma viagem pela Europa com um amigo e demos por nós a ir para a Noruega já quase sem dinheiro no bolso e por isso andávamos à procura de alguém que nos abrigasse em regime de couchsurfing, que dar 40€ por noite, cada um, num Hostel, nos pareceu um roubo maior do que, mesmo sendo portugueses estamos habituados. Então disseram-nos "Querem ficar numa Squat House?" e nós dissemos que sim. 


Sendo que squat quer dizer agachamentos pensámos que era uma casa cheia de mulheres de rabos torneados e coxas definidas. 

Mas pelo sim pelo não, fomos pesquisar à internet e vimos que afinal é uma casa outrora abandonada, agora ocupada por pessoal à margem da sociedade, que é como quem diz bilús da cabecinha. Vimos que havia dois em Oslo, um deles tinha sido invadido por grupos de extrema direita o mês anterior e tinha havido tiros, esfaqueamentos e mortes. Depois havia outro que era mais calmo, que fazia parte de uma comunidade de artistas. 50% pareceu-nos uma probabilidade aceitável e então lá fomos. Chegando a Oslo pedimos indicações nas ruas a um casal e eles começam a falar entre eles em português sobre qual o melhor caminho. Nós dissemos admirados "Vocês falam português?", depois de uma pausa de 2 segundos os olhos do homem arregalam-se e diz "Claaaaaro, sou Angolano, ya?". E pronto gerou-se a galhofa, ele foi-nos quase lá levar a pé e disse "Vocês vão ficar nesse sítio? Porra... vocês são aventureiros, vá eu deixo-vos aqui nesta rua depois é seguirem caminho". Ficámos muito mais confiantes.

Depois de quase termos sido assaltos lá chegámos à casa, era a tal mais calminha. Batemos à porta e fomos recebidos por uma rapariga claramente lésbica, das más. Fomos encaminhados para o nosso quarto, uma sala grande com ligação a uma cozinha, com 2 beliches de 3 andares e 2 colegas de quarto que eram residentes permanentes. Um Nigeriano e um Alemão, sentados ao computador a jogar jogos do virar do século, à média luz. Janelas reparadas com fita adesiva, colchões claramente retirados do lixo, tal como tudo o resto que decorava o quarto. O que para nós era lixo, para eles era reciclagem. Havia casa de banho, sem chuveiro. Éramos para ficar lá 3 noites, decidimos ali que 3 noites eram 2 noites a mais. Lá nos instalámos, já eram cerca de 23h e o cansaço era muito. Fizemos um pouco de conversa de circunstância e tentámos dormir, algo que era impossível pelo desconforto de estar ali com dois desconhecidos que faziam o Júlio de Matos parecer uma colónia de férias. Dentro dos sacos cama, com uma almofada feita de tshirts, com os ombros a tocar no colchão comecei a sentir comichão no corpo todo mas lá consegui fechar os olhos 1 ou 2 horas. Acordámos por volta das 10h e eles ainda ali estavam, colados ao PC, a fumar cigarros de 5 em 5 minutos. Ao menos o fumo ajudava a aquecer, porque lá fora o termómetro já marcava os negativos.

Bem, lá fomos visitar a cidade e procurar artistas de rua para filmar, que era com esse propósito que já estávamos a viajar há quase 2 meses. Não encontrámos nada de jeito. Comprámos bilhete de comboio para as 8 da manhã do dia seguinte e lá fomos para os nossos aposentos depois de jantar. Lá estavam os nossos anfitriões no mesmo local e começámos a conversar. A conversa começou por religião, já não sei porquê, devo ter sido eu a ver se alguém nos dava uma facada. Felizmente as visões religiosas eram as mesmas que as minhas e a conversa começou a fluir por ai. O Nigeriano estava sempre calado mas o Alemão começou a soltar-se. De faca na mão a cortar cebolas ia entrando e saindo da cozinha para mandar bitaites, a revirar os olhos e a rir-se de forma maquiavélica entre cada argumento. A sério... saído de um filme de terror. Estava a cozinhar bacalhau e cogumelos. Na Noruega o bacalhau não é seco e salgado como o nosso, é fresquinho e aquele cheirava a bordel de vão de escada. Nojo. Perguntaram-nos se éramos servido, mas nós já tínhamos comido, embora não tenha sido apenas por isso que não aceitámos. 

A conversa passou por todos os assuntos possíveis e imaginários, política, física quântica, teorias da conspiração, desemprego e o estado do mundo e do ser humano. Percebi então que o Karl, era o nome dele, estava no limiar da genialidade e da esquizofrenia. Ele dizia ser Engenheiro Físico que deixou a carreira porque o seu trabalho estava a ser utilizado para desenvolver armas de destruição maciça. Ele dizia também ser mestre de Xadrez capaz de bater as máquinas que derrotaram o Kasparov.

Para nos provar, colocou o jogo de xadrez do Windows XP na dificuldade máxima e... perdeu... 3 vezes seguidas. 

Segundo ele porque já estava meio bêbedo e tinha fumado erva. Isto é mesmo que um gajo dizer que é dos actores porno mais requisitados da indústria e depois quando vai para a cama com uma gaja não conseguir pô-lo de pé. Ainda assim ele era sem dúvida uma pessoa extremamente inteligente e culta, disso não havia dúvida e ficava sempre entusiasmado quando falávamos de alguma coisa que ele não sabia para poder aprender, e esse é o maior sinal de inteligência que se pode ter.

Fez-nos imensas perguntas sobre sobre Portugal e a nossa cultura. Mostrei-lhe no youtube Carlos Paredes, Amália e Mariza. Ele adorou, passou uma hora a ouvir fado e a pedir-me para traduzir as letras. Vi-lhe as lágrimas nos olhos e encheu-me de orgulho de ser Português. 

A meio de uma conversa sobre alimentos geneticamente alterados ele diz "Não, eu nunca compro comida no supermercado"... e nós, "Say what?!", que é como quem diz "Oi?!". E descobrimos que a comida vinha sempre do lixo. Aquele bacalhau e aqueles cogumelos fresquinhos que nos tinham oferecido tinham vindo de um contentor algures ali na cidade. É por estas e por outras que as regras da boa etiqueta da Paula Bobone são parvas. 

Passou a noite toda a cravar-nos tabaco de enrolar, que lá custava 25€ o pacote, ou seja, era o único que tínhamos porque trouxemos da Suécia, que 25€ para fumar nenhum de nós é assim tão viciado. O tabaco acabou, ele vem cravar mais um e nós dizemos "Já não há...". Ele agarra no cinzeiro e diz: 


"No problem... I'm hardcore muahahahaha" e começa a desfazer as beatas e voltar a enrolar cigarros. 

Fez mais uns 20 cigarros do cinzeiro, já com as mãos, os dentes e lábios todos cheios de cinza, realçando ainda mais os dentes podres que ele já tinha. Não sei se eu e o João conseguimos disfarçar a nossa cara de nojo. Mas no fundo no fundo o esperto foi ele, que nós bem nos apetecia mais um cigarro e ficamos ali de ressaca, mas com os dentes mais ou menos brancos.

Eram 6 da manhã e começámos a arrumar as coisas para ir embora, sem termos dormido nada, depois de passarmos horas na conversa. Vi que tínhamos ganho o respeito deles, que vivendo fora do sistema olhavam para nós como 2 putos betinhos que andavam a passear. No entanto perceberam que não éramos assim tão diferentes em termos de valores como eles. E eu senti o mesmo por eles e percebi que foi talvez a experiência mais marcante e enriquecedora dessa viagem. Fomos ali muito mais bem tratados do que em muitos hosteis em que pagámos e sentimo-nos mal pelos nossos preconceitos iniciais, embora fosse impossível não os ter porque se alguém tinha ar de maluco, canibal e psicopata era o Karl e o amigo. Mas pelos vistos eram dos fofinhos ou acharam que a nossa xixa era rija. Fiquei a invejar-lhes a liberdade mas não os hábitos de higiene. 

Muitas conclusões filosóficas se podem tirar desta experiência mas hoje não me apetece. Bom início de semana!

PS - Já aqui escrevi sobre outra personagem tenebrosa que encontrei num hostel, o Koala Zombie, é clicar aqui caso tenham interesse.




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