Lembram-se da última vez que passaram quatro dias sem rede no telemóvel e sem Internet? Já há muito que não me alheava do mundo digital durante "tantos" dias. Fui passar o fim-de-semana prolongado à Serra da Lousã, numa aldeia de xisto, e mal cheguei percebi que não havia rede de telemóvel. Nada, pauzinhos só os dos ramos quebrados das árvores que tanto jeito dão para acender a lareira, mas que não servem para atualizar o mural do Facebook. Não havia nenhum café com Internet e para me deslocar até à civilização teria de fazer um caminho de curva e contracurva de vinte minutos de carro. A minha primeira reação foi «E agora? Vou ter de conversar com a minha namorada? E se não temos nada em comum e só o descobrir agora passado uma década?». Não havendo, também, televisão no apartamento, seria o mais perto de que já estivera de ser daqueles intelectuais presunçosos que perguntam «Casa dos Segredos? O que é isso? Não tenho televisão.» enquanto folheiam um livro de Kafka em alemão e ajustam os óculos de massa redondos.
Dia 1º
As primeiras horas foram as piores: os tremores nas mãos sempre que fazia aquele movimento a que o hábito me forçara, de tirar o telemóvel do bolso e o desbloquear só para ver as notificações da vida digital. Nada. Nem uma. Não havia símbolo de novo email recebido, de nova mensagem no Facebook, de nenhuma notícia nos feeds que subscrevo. Nada.
Estiquei o braço pela janela, subi ao telhado de telemóvel no ar, saí de casa e dei a volta à aldeia e nada. Por entre os bons dias de sorrisos rasgados dos moradores, que parecem dar-se bem em viver no obscurantismo do mundo sem rede, vi outro rapaz ao longe, de braço esticado com o seu telemóvel. Olhámo-nos de forma cúmplice e acenamos com a cabeça como quem compreende a dor um do outro. Mais tarde, dei por mim na varanda a contemplar a paisagem sublime do vale, com árvores e verde a perder de vista, e a pensar: «Se, ao menos, pudesse mostrar como isto é bonito a todos os habitantes do planeta Instagram!». Já me contentava com um tweet, uma frase de 140 caracteres cheia de abreviaturas, a dizer «Tou s net, n se preocupem cmg. #semnet #semrede #semtv #cromagnon». Jantámos e degustámos uma garrafa de vinho na varanda ao pôr-do-sol e, sem os olhos colocados nos ecrãs de telemóvel, percebi que a minha namorada até nem é feia. Ah, e descobri que é assistente social.
Era como se o mundo tivesse apagado o meu contacto do seu telemóvel, ou como se uma ex-namorada tivesse emigrado para a Antártida e nos bloqueasse no Facebook.
Estiquei o braço pela janela, subi ao telhado de telemóvel no ar, saí de casa e dei a volta à aldeia e nada. Por entre os bons dias de sorrisos rasgados dos moradores, que parecem dar-se bem em viver no obscurantismo do mundo sem rede, vi outro rapaz ao longe, de braço esticado com o seu telemóvel. Olhámo-nos de forma cúmplice e acenamos com a cabeça como quem compreende a dor um do outro. Mais tarde, dei por mim na varanda a contemplar a paisagem sublime do vale, com árvores e verde a perder de vista, e a pensar: «Se, ao menos, pudesse mostrar como isto é bonito a todos os habitantes do planeta Instagram!». Já me contentava com um tweet, uma frase de 140 caracteres cheia de abreviaturas, a dizer «Tou s net, n se preocupem cmg. #semnet #semrede #semtv #cromagnon». Jantámos e degustámos uma garrafa de vinho na varanda ao pôr-do-sol e, sem os olhos colocados nos ecrãs de telemóvel, percebi que a minha namorada até nem é feia. Ah, e descobri que é assistente social.
Dia 2º
Acordei com o chilrear dos pássaros que cantavam depois da chuva, que me havia embalado com o seu ritmo percussionista a bater nas telhas, ter-se recolhido para deixar o sol dar os bons dias. Estendi o braço naquele ritual de sempre que é o de ir buscar o telemóvel, ainda deitado e ensonado, para que ele me diga como está o mundo lá fora. Sem rede não havia más notícias, nem boas. Levantei-me e ao tomar o pequeno-almoço tirei o telemóvel do bolso para ver um vídeo no Youtube… lá tive de ler os rótulos da caixa de cereais para me distrair como fazia quando ainda comia Cerelac em cimento, com grumos, e polvilhada com pó seco por cima. À noite, sem WiFi, mas com estrelas no céu, decidi sentar-me numa cadeira no alpendre e olhar para cima. Lembrei-me, mais uma vez, de quando era puto e fazia a viagem de noite para a Guarda, em que ia com a cabeça na chapeleira do carro a observar o céu estrelado por entre as estradas da serra. Pensava que era o céu que ali, naquela zona, tinha mais estrelas do que o de Lisboa. Há muitos, muitos anos, que não observava assim o céu por mais de dez minutos. De repente, o meu telemóvel tocou! Será que a civilização tinha, finalmente, chegado àquela aldeia perdida no meio da floresta? Será que os deuses ouviram as minhas preces e instalaram uma antena cancerígena ali perto? Não, era apenas o despertador que se tinha baralhado com o facto de não conseguir acertar as horas pela rede. Não se faz.
Dia 3º
Sonhei que o mundo inteiro tinha ficado sem Internet e sem telecomunicações. Acordei aliviado por tudo não se tratar de um pesadelo, mas lembrei-me que para mim essa distopia era, ainda, bem real. O meu intestino pediu permissão para evacuar e foi quando, no gesto de sempre, coloquei o telemóvel no bolso antes de ir à casa-de-banho. Sentei-me com ele na mão, o telemóvel, e lembrei-me: como é que iria conseguir defecar sem aquele que é o melhor dos laxantes que é o de fazer scroll infinito no feed do Facebook e ver merda atrás de merda que as pessoas vão publicando? Tentei jogar um jogo, mas também precisava de acesso à Internet. Optei por ler uma revista e descobri coisas interessantíssimas como o facto da Gigi ter 3 milhões de seguidores no Instagram e que ela e a família são as novas Kardashians. Até as revistas sérias se vêem obrigadas a comentar os fenómenos da indústria do nada que nascem nas redes sociais. Durante a tarde, usei a minha máquina fotográfica que já estava parada há uns tempos, porque agora parece estranho utilizar um aparelho que tira fotos muito melhores, mas que não tem ligação direta ao Instagram. Tirar fotografias com a máquina, descarregar para o PC e editar, para depois publicar passou a ser um esforço demasiado grande para nós.
Preferimos as fotografias mal tiradas, pixelizadas e queimadas, porque passou a ser mais importante partilhar do que guardar uma boa recordação.
Dia 4º
Acordei e lembrei-me que ainda não tinha carregado o telemóvel uma única vez. Aliás, nem tinha dormido com ele na mesinha de cabeceira como é costume. Tinha ficado na cozinha, abandonado algures, como se de repente fosse menos importante do que o descascador de batatas. Só por descargo de consciência peguei-lhe e vi, novamente, aquela frase no topo: «Apenas chamadas de emergência», como se o simples facto de não ter rede não fosse, por si só, uma emergência. Decerto que num futuro não muito longínquo, haverá uma espécie de INEM para estas ocasiões: o INER, Instituto Nacional de Emergência de Rede, para o qual ligamos a pedir uma equipa de para-técnicos porque estamos sem conexão. Eles virão numa carrinha, com sirenes e que tem prioridade acima das ambulâncias, para nos reanimarem a Internet onde quer que estejamos. Vêm equipados de WiFi portátil para que, caso as manobras falhem, possamos utilizá-lo para dar só aquela olhada no nosso mural e saber se aquela última fotografia que publicámos já chegou aos vinte likes. Aliás, no futuro, todos os pássaros terão um router enfiado na cloaca para que haja Internet mesmo no meio da floresta mais densa. Ou talvez sejam as árvores alteradas geneticamente a dar-nos sinal. Se as árvores dessem WiFi em vez de oxigénio é que veríamos a desflorestação amazónica a abrandar. Encontrei, antes de voltar para Lisboa, uma espécie de oásis no meio do deserto: um café com WiFi! Um euro por meia-hora! Qual toxicodependente em reabilitação negociei comigo próprio se deveria ceder à tentação: por um lado, era tempo suficiente para receber aquela enxurrada de notificações pela qual tanto ressacava; por outro, pagar para ter meia hora de Internet é quase tão decadente como pedir uma seringa emprestada no Bairro Alto às quatro da manhã. Resisti, numa espécie de conexão tântrica, preferi aguardar até chegar a casa e fazer com que a espera aumentasse o prazer.
Foi já durante a viagem que o meu telemóvel acordou do seu coma e me presenteou com aqueles sons das notificações das várias aplicações a atropelarem-se. Vivi 14 anos sem Internet e já nem me lembro como eram esses tempos. Ficamos enervados e impacientes quando a Internet falha ou está lenta e não tiramos partido da liberdade que pode ser estarmos incontactáveis. Sim, sem Internet não temos forma de, a meio de uma discussão no café com os amigos sobre o nome de um ator ou atriz de um determinado filme, ir ver quem tem razão. Sim, sem Internet não haveria acesso fácil à pornografia e isso seria um mundo triste. Não sou daqueles velhos do restelo que dizem que as novas tecnologias afastam as pessoas e nos tornam antissociais. Trabalho em startups tecnológicas e a Internet desde há muito que faz parte da minha vida profissional e, também, pessoal, mas não há dúvida de que o mundo é cada vez mais instantâneo. Cada vez mais é uma mistura pré-feita em que basta adicionar água para ter um sucedâneo qualquer para enganar o palato. «A mousse é caseira?», perguntamos sempre num restaurante.
Todos preferimos mousse caseira, desde que sejam os outros a fazer por nós.
Contentamo-nos com o instantâneo se isso nos der menos trabalho e desde que fique bem na fotografia instantânea, mas sem ser daquelas de abanar, porque essas dão muito trabalho a partilhar.
Faz bem afastarmo-nos um pouco, pousarmos o telemóvel, e em vez de tirar snaps e fotos para o Instagram com filtros, apreciarmos o mundo com a melhor das objetivas que são os nossos olhos. Largarmos o Twitter e em vez de respondermos monossilabicamente a quem está à nossa volta, termos conversas inteiras com mais de 140 caracteres. Em vez de publicarmos no Facebook a dizer onde estamos, o que estamos a fazer, ou a pensar, absorvermos tudo e depois marcarmos um jantar para contar a quem nos é próximo. Sem likes. Só com partilhas, mas à moda antiga de quem conta uma história. Sem shares. Sem taggar porque quem lá esteve não precisa de ser lembrado. Sem views. Sem emojis, mas com emoções. Sem smiles, mas com sorrisos. Sem filtros. Sem merdas. Caso contrário, no nosso funeral, convocado num evento de Facebook, vamos ouvir: «Vamos sentir a sua falta, tirava selfies como ninguém e fazia tweets tão perspicazes. Era um grande amigo de Facebook, seletivo nos seus likes, e que respondia às mensagens sempre que elas ficavam com o sinal de visto. Sempre fez gosto nas páginas em que eu lhe pedia e chegou a partilhar vários apelos de crianças subnutridas e cães desaparecidos. Era um cidadão digital exemplar, já na vida real nunca o conheci, mas dizem que era um otário. Paz à sua alma e às suas cookies.»
Bom, agora vejam lá se fazem um like e clicam no botão de partilhar porque não há nada mais irónico e paradoxal do que difundir um texto sobre os malefícios da Internet e das Redes Sociais, nelas próprias.
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