21 de junho de 2017

Pesadelo numa Repartição das Finanças



Bem sei que ainda só se fala sobre os incêndios, mas eu também tenho desgraças na minha vida quase tão graves e que precisam da vossa atenção. Ontem, passei o dia nas Finanças. Ontem, que foi o dia mais longo do ano, decidi utilizar todas essas horas de sol para me enfiar em repartições das Finanças. Sim, repartições, plural, mas já lá vamos. Digo-vos que já estive em funerais mais animados e, tal como nos funerais, não fui às Finanças por gosto, mas sim por necessidade que calculo ser a razão que leva toda a gente a colocar os pés numa repartição, seja cliente ou trabalhador. Acontece que submeti o IRS e parece que houve divergências, sendo que a palavra «divergências» dita pelo Estado quer dizer «Olha que nós temos sempre razão e provavelmente vais pagar multas e cenas.». Fui notificado para esclarecer essas divergências e, como bom cidadão que sou, fui logo, a correr, resolver a situação porque ficar a dever alguma coisa ao Estado é pior do que ficar a dever ao Pablo Escobar, com a diferença que a plata és tu que a tens de dar. Lá fui, de manhã, para as Finanças de Alvalade. Chego por volta das 10h, tiro a senha e calha-me o número da sorte 83. Olho para o monitor e vejo que ia na senha 40. Nada mau. Tudo o que seja não ter de dar a volta é bom.

Felizmente, as filas das Finanças ainda não são como as outras filas em que os velhos têm sempre prioridade, caso contrário, em Alvalade, a única forma de seres atendido era esperares até chegares a velho.

Faço aquele pequeno ritual de esperar uns 20 minutos e perceber a que velocidade é que aquilo está a andar. Vejo que, nesses 20 minutos, o número avançou até ao 45 e recorrendo-me dos imensos conhecimentos matemáticos que adquiri ao longo de oito anos de curso de engenharia, percebo, através de uma regra de três simples, que a este ritmo iria demorar, sensivelmente, duas horas e meia. Fui ao café, aos correios, fazer compras para o mês e li Os Maias duas vezes. Voltei, passada hora e meia, com medo de já ter perdido a minha vez mas, felizmente, ainda faltavam 20 números! Ufa, que alívio. Lá esperei, desta vez sentado ao lado de todas as outras pessoas que estavam ali com cara de enterro. Já a espera ia longa e eis que recebo o que me pareceu ser um sinal da existência divina: do 75 ao 82 ninguém se acusou para ser atendido. Tinham desistido ou falecido, seja como for, ainda bem. Ao ver o meu número no ecrã, levanto-me como se tivesse uma mola nos glúteos e tivesse feito bingo. Aproximo-me do balcão, digo bom dia e sento-me:

- Então parece que tenho umas divergências no IRS... - afirmo.
- Acontece, vamos lá ver isso então - diz a senhora, sorridente - dê-me o seu cartão do cidadão.
- Ora aqui está.
- Hum... não pode tratar das divergências aqui, tem de ser nas Finanças da sua zona. - diz-me.
- A sério? - pergunto, incrédulo.
- Pois, é Amadora Zona 3. - confirma.
- Não sabia... - digo como olhar de Bambi ao ver a mãe a morrer.
- Divergências é sempre na repartição da zona onde mora - diz como se fosse uma informação veiculada, diariamente, nos media.
- Pronto, ok, mas pode dar-me uma ideia do que é? - tento.
- Ah sim, podemos ver aqui. Não podemos é resolver. - diz.

Lá estive com a senhora a tentar perceber o que teria acontecido e ao que parece eram questões com as retenções na fonte de alguns recibos verdes. Nada de grave, mas o mais simples erro com o Estado pode significar ter de ir alugar o rabo para o Parque Eduardo VII para pagar as dívidas. Pelo que vi o erro não seria meu, mas sim de uma das entidades que me pagou. Menos mal, à partida. Descansei, agradeci, comi um rissol no café do lado e pus-me a caminho das Finanças da Reboleira.

Chego lá às 14h do dia 21 de Junho de 2017, mas parecia que tinha chegado no ano de 1980.

Pensei que o meu velhinho Clio, acabado de vir da oficina, fosse agora um DeLorean, por engano do mecânico, e me tivesse feito regressar ao passado distante onde há ventoinhas com fitas esvoaçantes em vez de ar condicionado, ecrãs CRT com protecção para os olhos, e pessoas que apenas utilizam o dedo indicador para teclar. Parecia que estava dentro de um episódio do Duarte & Companhia com a diferença de que agora já ninguém pode fumar dentro dos escritórios. De resto, tudo igual. Tal como existe o andar modelo na venda de imobiliário, aqui parecia ter encontrado a repartição museu, parada no tempo, resistente às intempéries e com alguns trabalhadores que pareciam fossilizados. Tiro uma senha, daquelas do talho porque o digital podia destoar e sai-me o número 29. Ia no 20 e celebrei por dentro ao achar que iria demorar pouco. Esqueci-me que estávamos em 1980 e que, como tal, 9 senhas equivaliam a 50, já que aqueles computadores precisam de ser reiniciados a cada operação de somar na calculadora do Windows. Ao ver aquele oásis perdido num mundo cada vez mais tecnológico, decidi recorrer ao meu telemóvel, mais potente do que todos aqueles computadores juntos, e tirar uma fotografia para ilustrar este texto que pensei logo em escrever. Sinto uns passos a aproximarem-se na minha direcção e oiço uma voz:

- Peço descupaaaa... o senhor estava a tirar uma fotografiaaaa? - diz uma senhora.
- Sim. - respondo.
- Sabe que não pode tirar fotografias aquiiii? - pergunta.
- Não, por acaso não sabia. - digo.
- Vou ter de pedir para apagar a foto, simmmm? - pergunta num tom desagradável.
- Sim, sem problema. - digo enquanto procuro na galeria de imagens.
- É que não pode tirar fotografias aqui... percebeuuuu? - pergunta no mesmo tom.
- Sim. Já apaguei. - respondo, mostrando-lhe o telemóvel.
- De certezaaaa...? - desconfia.
- Sim. - afirmo.
- Prontoooo... - diz enquanto se afasta.
Como podem ver pelo arrastar da última sílaba de cada palavra, ela utilizou um tom paternalista e arrogante. Há uma diferença entre dizer «Peço desculpa» e «Peço desculpaaaa....», enquanto se faz um sorriso falso.
- Não precisa é de ser arrogante, sabe? - digo, não me contendo.
- Desculpeeee? - diz, virando-se para trás.
- Que pode dar-me a informação e pedir para apagar sem ser arrogante. Não é preciso. - sorrio, ironicamente.
- Eu fui arroganteeee?!?!?!?! - muda o tom.
- Pareceu-me.
- Fui arrogante? Eu fui arrogante? - perguntando a toda a gente que lá estava sentada, à procura da aprovação. - Vê, ninguém acha que eu fui arrogante. - diz, depois de ninguém se manifestar contra nem a favor já que ninguém quer desautorizar a pessoa que a seguir as pode tramar com os impostos. É como arranjar stress com um empregado de mesa antes de sermos servidos ou com um cabeleireiro antes do corte. Foi pouco inteligente da minha parte, bem sei, mas não me contive.
- Pronto, se calhar eu fiz confusão. Está calor aqui e posso ter interpretado mal. - digo, a tentar desanuviar.
- Pois, deve ter sido. Se eu fosse arrogante tinha chegado aqui e tirava-lhe o telemóvel para apagar as fotografias! - diz ela, reacendendo a chama de um problema que já estava resolvido.
- Sabe que não pode fazer isso e isso não era ser arrogante, era ser parva até porque não iria conseguir tirar-me o telemóvel e podia aleijar-se.
- Humpf... - resmunga enquanto vira costas e vai embora.

Nisto, fico em modo de alerta à espera que aparecesse um qualquer agente da autoridade a tentar fazer-me um mata-leão. Comecei logo a rever as aulas de jiu jitsu, mentalmente, para me recordar das várias técnicas de inverter a posição, fazer uma chave de braço ao polícia e mamar-lhe da boca que, segundo me ensinaram, é a melhor técnica para acabar um combate. Ninguém que anda à luta está preparado para aquilo se transformar numa violação homossexual, anotem que pode dar-vos jeito no futuro. Bem, sanado o conflito, lá esperei uma hora até que sou atendido. Sento-me:

- Boa tarde, parece que tenho umas divergências no IRS. - digo.
- Ora vamos lá ver isso, diga-me o seu número de contribuinte e vamos lá ver o que é que se passa. - diz a senhora, sorridente.
- Pelo que vi nas Finanças de Alvalade tem a ver com uma entidade que não submeteu todos os recibos - advirto.
- Ah, já sabe? Então porque é que não tratou das divergências lá em Alvalade? - pergunta, confusa.
- Porque me disseram que tinha de ser aqui... - respondo.
- Porquê? - insiste.
- Porque disseram que tinha de ser na zona de residência... - digo.
- Não tem. Pode fazer onde quiser. - diz, para meu espanto.
- Ai é? Então ando eu aqui a perder tempo para nada?
- Pois, o colega lá de Alvalade não sabe nada, está visto. - brinca dizendo a verdade.
- Eu a pensar que eu é que era ignorante, afinal a senhora que me atendeu é que é incompetente.
- Ah ah, há um mês que se pode fazer onde se quiser, mas há quem não queira ter trabalho, sabe como é... - diz.
- Pois... depois ficam todos com má fama.
- Ora nem mais. Nem mais.

Não vou usar o nome verdadeiro desta senhora que me atendeu nas Finanças da Reboleira porque isto pode chegar até lá e ela não querer o protagonismo, por isso, vou usar o nome fictício de "dona Impecável" porque foi isso que ela foi: IM-PE-CÁ-VEL. Viu e reviu tudo, sempre sorridente, enquanto fazia contas numa calculadora dos anos 50, daquelas que sai papelinho, e anotava e voltava a fazer as contas para garantir que estava tudo certo. A situação não era trivial e esteve mais de uma hora a tentar perceber o que se passava e a melhor forma de resolver, mesmo já se tendo fechado a porta das Finanças e passado do horário de fecho das 15.30h. Nem com isso, por um segundo, tentou apressar-me e fazer as coisas a despachar e, mesmo quando eu já estava satisfeito voltou a confirmar, a imprimir tudo e deixar notas para garantir que se o problema voltasse a acontecer seria mais fácil de resolver. A meio da caça ao problema, onde eu ia mandando bitaites aleatórios sobre as potenciais causas, ela diz-me: «Eu até gosto disto. Quando é fácil não tem piada, isto assim é um desafio, parece um puzzle e temos de juntar as peças e perceber o problema.». 

A dona Impecável, nos seus cinquentas, a trabalhar numa repartição das Finanças, com a má fama de incompetente que isso acarreta, sem ar condicionado e com este calor, tinha gosto naquilo que fazia e isso fazia toda a diferença.

Saí de lá com o problema resolvido e mais do que isso: percebido. Uma coisa é saber que dois ao quadrado é quatro, outra é saber porque é que é quatro. Se toda a gente fosse como a dona Impecável, não havia piadas com funcionários públicos e repartições das Finanças. Felizmente, para mim que gosto fazer humor, que também há a dona Otária que me mandou ir a outro lado porque não queria trabalhar e a dona Arrogante De Merda que acreditou que eu tinha apagado a fotografia. 





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