4 de dezembro de 2017

Faz um ano que adoptei a minha cadela



Faz hoje um ano que fui buscar a Zaya a um canil. Dias antes, tinha lá estado a filmar um vídeo - a desafio da SOS Animal - a chamar nomes a todos aqueles que, seja qual for o motivo, abandonam animais de estimação. Ir a um canil é tramado, já tinha ido a dois, mas há alguns cães que estão lá "bem", em matilha, com algum espaço para irem passando o dia a dia e, aparentemente, bem alimentados e tratados. A Zaya não era um desses casos. No final do segundo dia de gravações, já tendo tudo o que precisava, acabei por ir filmar a ala dos "cães potencialmente perigosos" que estavam fechados noutra parte do Canil Municipal de Sintra. Ao contrário dos outros, estavam numa zona fechada, sem sol, enclausurados sozinhos em jaulas com pouco mais de um metro quadrado. Entre vários, demasiados, que curiosamente rosnavam e ladravam menos do que os outros "não perigosos" e se iam chegando às grades a pedir festinhas, lá estava a que viria a chamar-se Zaya. Sozinha, toda suja e remelosa, com um comedouro de metal na boca, a tremer e a fazer olhos de quem pedia para que a levassem dali para outro lugar, fosse ele qual fosse.

Fiquei a filmá-la quase meia hora, à espera que este olhar desse mais impacto ao vídeo e incentivasse alguém a ser mais humano, mas, apesar dos 4 ou 5 milhões de visualizações, o maior impacto ficou em mim. Aquela imagem ficou e saí do canil com um peso fodido de quem não pode fazer nada para mudar aquela realidade. Cheguei a casa e mostrei as imagens à minha namorada e aqueles olhos apavorados fizeram os nossos encherem-se de lágrimas. Já andávamos a pensar adoptar um cão, mas só daí a uns meses e nunca seria um pitbull, muito menos adulto e sem se saber quais os traumas que traz de brinde. Especialmente pela minha namorada, já que eu tenho mais arcaboiço para aguentar caso o cão se passasse por algum motivo. Como perguntar não custa, tentei saber o passado daquele cão e foi aí que me disseram que era uma cadela; que tinha sido encontrada amarrada a uma árvore ao pé de um barracão no meio do mato em Sintra; e que estava ali, naquela jaula, há dois ou três meses. Era muito meiga e não tinha historial de violência nem processos em tribunal, disseram-me. «Vamos lá buscá-la… coitadinha.» disse a minha namorada depois de saber isso.

Passados dois dias, num domingo à tarde, há exactamente um ano, fomos buscá-la para passar um dia connosco e ver como se dava. Nunca mais voltou ao canil.

Quando a trouxeram da jaula vinha com um olhar de curiosidade misturado com pânico. Deram-lhe um banho rápido só para tirar aquela merda seca colada ao pelo de quem mijava e cagava onde dormia e comia porque não havia outro sítio. Enfiaram-lhe um chip na pouca carne que revestia as costelas salientes e nem refilou; meti-lhe uma trela maricas e cor de rosa que a minha namorada comprou nos chineses, e ela foi puxando até ao parque de estacionamento do canil, como se soubesse logo que era para ir embora dali. Quando lhe abri a porta do carro e entrou para o banco de trás, previamente revestido com umas toalhas, foi quando tive a certeza de que nunca mais a deixaria voltar para aquele buraco. A felicidade dela a esfregar-se naquelas toalhas mil vezes mais fofas do que o cimento frio que tinha sido a sua cama durante meses, foi o suficiente para nos convencer. Tinha aquele sorriso de cão estampado no rosto, que embora não seja um sorriso humano, interpretamos como felicidade. E acho era.

Como já veio adulta, dois anos talvez, a educação é mais desafiante. O cuidado é redobrado e apesar de se dar bem com toda a gente, nunca se sabe quando é que se pode atirar a um gajo de chapéu de cowboy azul e bigode só porque o antigo dono dela tinha esse estilo e lhe ficou o trauma. Por exemplo, da primeira vez que tirei o cinto das calças ao pé dela, encolheu-se toda e foi para um canto. Não me parece que seja um instinto inato, mas sinal que o antigo dono fazia mais do que negligenciá-la. Filho da puta. Quem é que trata assim um animal, ainda por cima um que não tem um pingo de agressividade para outras pessoas? Devia ladrar e roer coisas, portar-se como um cão talvez tenha sido esse o erro dela. Roeu-me um bocado do sofá, sim. Estragou – e ainda estraga – o chão todo com xixi e com derrapagens. Tenho a roupa cheia de pelos. Toda. O carro idem. Não me deixa dormir de manhã acordando-me com lambidelas na cara depois de, provavelmente, ter lambido o próprio cu. Ladra quando ouve outros cães. Puxa como um mini tractor quando vai de trela na rua. Já trepou para a bancada da cozinha para enfardar comida indiana que tinha acabado de trazer do restaurante, mas que como era picante serviu de emenda e nunca mais se armou em ninja que rouba comida. Partiu um candeeiro. Já destruiu duas camas dela. Já deu despesa ao ser operada a um hematoma na orelha. Já fez isto tudo e muito mais fará, mas nunca me passou pela cabeça devolvê-la como se fosse um casaco que, afinal, ao espelho e luz de casa, não nos assenta tão bem quanto isso. É chato acordar cedo ao fim de semana para a levar à rua? Um bocado. Apetece ir passeá-la numa noite de dezembro com frio e chuva? Não apetece nada. É chato andar a pedir aos meus pais ou irmão para ficarem com ela quando vou para fora e não a posso levar? É. É agradável ela não se dar com outros cães e ficar nervosa quando vê um na rua porque deve ter sido usada para lutas de visto que tem marcas no corpo e os dentes todos partidos? Nada agradável. A casa cheira a cão? Há quem diga que sim, mas nem noto.

É giro apanhar cocós da cozinha? Nem por isso, mas acordar com o cheiro a merda nem é assim tão mau, porque é sinal que já não a tenho de levar à rua.

A cena é que ela me dá muito, muito mais do que presentes de cocó. Compensa sempre. Nem é por ela, por saber que ela está melhor e que a "resgatei", como agora se diz. É mesmo por mim. É porque chegar a casa e ser recebido aos saltos e lambidelas faz com que o stress que apanhei no trânsito passe logo. É porque dar-lhe uma festa abranda um bocado o tempo. É porque ser acordado por ela é mil vezes melhor do que andar a meter o snooze no despertador. É porque enche a casa de alegria, por vezes demasiada alegria para um apartamento pequeno. «Ter um cão num apartamento não é bom.», já ouvi de alguns vizinhos. Devia estar melhor no T0 de dois metros quadrados, se calhar. Não sei queixa. Nunca a ouvi dizer «Isto é tudo muito giro, mas tenho pouco espaço aqui.» enquanto vai do sofá para a cama dela e da cama dela para o sofá e dorme 16 horas por dia. Só precisa de comida, mas menos do que a que tem tido já que veio com 18 kg e já está com 25 kg, feita lontra; precisa de passear e correr um bocado e felizmente a minha profissão permite-me estar mais tempo em casa e levá-la pelo menos três vezes à rua; e precisa de mimos, coisa que tem a mais, mas que é porque merece receber festas e carinho com retroactivos por todo o mal que sofreu, embora nem se deva lembrar. Os cães esquecem rápido e confiam na espécie humana mesmo sem merecermos.

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O último cão que tinha tido morreu há 7 anos. Pensei que nunca mais fosse gostar de um não humano como gostei do Zen. Enganei-me, apesar de dizer à Zaya, várias vezes, que nunca será como ele e que se volta a mijar no tapete da sala volta para o canil. Ela abana a cauda e tenta saltar-me para o colo porque sabe que estou a brincar e porque é um cão e não percebe o que estou a dizer. O Zen e o anterior que tive, o Byte, tinham sido comprados a um criador conhecido de uns amigos. Não pensei muito nisso, na altura, só queria finalmente ter o cão que andava a pedir aos meus pais desde os seis anos. Eram de raça shar-pei e o facto de terem a característica de não ladrar foi a única forma de convencer os meus pais a ter um cão num apartamento. Depois de entrar num canil, nunca mais seria capaz de comprar um cão. Não condeno quem o faça, desde que num criador com princípios e nunca naquelas montras nojentas que algumas lojas insistem em ter. Mas, antes de comprarem, vão dar uma volta a um canil. Nunca vão encontrar uma tão fofa como a Zaya, mas pode ser que vejam por lá uns que vos olhem de forma a que vos impeça de comprar um cão sem se lembrarem que podiam, efectivamente, salvar uma vida. Sim, não tenho fotografias dela em cachorrinha para dar like no Instagram, não a vi crescer, mas felizmente vou vê-la a envelhecer e a morrer sem estar naquela jaula em que era mais humano ser abatida.

Faz hoje um ano que agradeço ao filho da puta que a maltratou e abandonou e me possibilitou ser um bocado mais feliz. Agradeço a esse gajo que para compensar a pequenez do seu pénis decidiu arranjar um "cão perigoso" para se sentir macho e depois o negligenciar e maltratar. Enquanto escrevo isto, ela está ali no sofá a olhar para mim. Deve pensar que sou uma espécie de Deus que a salvou do inferno. Tem-me em demasiada consideração. Sou só um gajo que precisa de um cão para ser completamente feliz e que percebeu que mais vale ir buscar um em sofrimento do que ser egoísta, embora haja sempre um pouco de egoísmo em ter um animal de estimação. Quando os meus outros cães morreram, um com cinco meses e o outro com cinco anos, pensei «Para que é que eu me faço passar por isto? Para que é que um gajo tem um cão e se apega tanto para depois sofrer isto tudo?». Quando a Zaya morrer a resposta será simples: para ela ter uma vida melhor e melhorar a minha.


PS: Sim, as fotografias são do Instagram da Zaya, Diário de uma Bitch, cadela diva. Podem seguir que faz parte de um projecto que ando a magicar para o ano, juntamente com o seu próprio blogue "Por Ladrar Noutra Coisa", onde vai dar o seu olhar canino sobre o mundo.

PS2: Os bilhetes para a segunda data do meu espectáculo em Lisboa já estão à venda neste link. A Zaya não estará presente, escusam de perguntar. Serei só mesmo eu, sei que não vale o mesmo, mas é o que se arranja. 




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