Cai a noite nas ruas do Serengeti Algarvio, mas podia ser de qualquer outro sítio com vida nocturna. O verão é a época alta da caça e o calor faz expor mais as presas devido à falta de vegetação provocada pelas secas. Ainda é cedo e as famílias de gnus passeiam juntas, sem recear os predadores que ainda não saíram de casa. As crias de gnu passeiam com os seus progenitores que não desconfiam que estas, após os pais irem dormir, se aventurarão nas ruas perigosas da cidade em busca de comida, bebida e parceiros para acasalar.
Passadas umas horas, a noite é, agora, mais cerrada e os barulhos dos talheres dos jantares nas esplanadas dão lugar à música de fundo que brota de dentro dos bares, como se de um canto da sereia se tratasse que atrai todo o tipo de espécies autóctones e migratórias da noite algarvia. Os pavões, machos e fêmeas, distinguem-se ao longe iluminados pelas luzes dos candeeiros que disfarçam a escuridão das ruas da cidade. Eles de t-shirt de alças e tatuagens tribais, com gel no cabelo e músculos salientes; elas de vestido curto e frases profundas tiradas da Internet tatuadas à volta da coxa, maquilhadas como se fosse camuflagem de uma guerra que é injusta. Os pavões executam rituais de acasalamento belíssimos; elas dançam, abanando a sua cauda vistosa ao som de funk brasileiro para atrair os pavões machos das redondezas.
Eles engatam com o olhar, encostados ao balcão, ou através de chamamentos elaborados como "Ó boa, comia-te toda".
Aprendizagens passadas de pais para filhos e aprimoradas ao longo de milhões de anos de selecção natural, visto serem estes animais os que mais procriam.
Por entre o fumo de um bar e o seu chão que cola, dois Alces machos chocam de frente, empurrados pela multidão que dança. Lançam olhares ameaçadores e grunhidos ferozes e imperceptíveis. A luta é iminente e a violência inevitável. Começam, desafiando-se com empurrões e disputando a atenção das fêmeas que preferem os Alces alfa, numa espécie de ritual de medição de hastes, para ver quem a tem maior e mais vigorosa. No meio da pista, as suricatas dançam em grupo, protegendo-se umas às outras. Fazem uma rodinha em que colocam os seus pertences no chão, mostrando que apesar da estatura, são animais fortemente territoriais. As aves de rapina circulam o grupo, olhando de alto para baixo, tentando perceber qual o ponto fraco do círculo de segurança criado pelas suricatas que estão sempre atentas, avisando-se umas às outras se o perigo se aproxima por trás em forma de um falcão bêbedo e com boca de urinol. Ao lado, os leões rodeiam as presas, alguns confiam que podem comer a gazela mais esbelta da manada, outros, ainda aprendizes e inseguros, optam pela que trouxe o carro, que por ter mais chicha é a que corre menos e, assim, tem menos probabilidade de escapar das garras dos predadores esfomeados. Por vezes, são as leoas que caçam e, normalmente em grupos, atacam os bisontes machos atirando-lhes com os cabelos para a cara, num movimento coordenado, e encostando e oferecendo a sua parte traseira, olhando para trás como se o esfreganço tivesse sido acidental. Não foi e ambos o sabem, restando agora ao macho tomar a iniciativa, pensando que foi ele a caçar, quando, na verdade, foi atraído para o covil.
Num canto, iluminado em intervalos de fracções de segundo pelas luzes intermitentes que dançam ao som da música, vemos que um predador já se alimenta de uma jovem gazela. Encostados à parede, ele tenta sufocá-la, colocando-lhe o seu maxilar aberto com a maior amplitude de tal forma que lhe tapa as fossas nasais e a boca. A língua percorre toda a circunferência e as mãos atestam a qualidade da carcaça, num espectáculo natural de uma beleza rara, mas que pode chocar os mais sensíveis. Na planície da pista de dança, acontece o inesperado e algo raramente captado em filme. Uma hiena tenta caçar uma jovem zebra, encurralando-a e oferecendo-lhe bebidas. A zebra, alheia ao perigo, ou não, aceita as oferendas e continua a sua vida, parecendo insinuar-se à jovem hiena que arriscou perseguir a própria comida. A caçada parece estar prestes a ter o seu clímax, eis se não quando um leão entra em cena. Grande e possante, de juba frondosa e andar confiante, decide intervir e, em apenas cinco minutos e sem gastar dinheiro, consegue aquilo que a jovem hiena tentava há mais de uma hora: a zebra coloca-se nas mandíbulas do leão por vontade própria e a hiena afasta-se do local, de cauda por entre as pernas. Provavelmente, aquela hiena passará todo o verão sem se alimentar e, fraca e subnutrida, sucumbirá ao frio do inverno. É a lei do mais forte, a lei da selva, impiedosa e brutal e onde, por muito que nos custe, não devemos intervir.
Cá fora, ouve-se um barulho característico, não muito longe, e todos os animais da savana param e inclinam a cabeça para vislumbrar o que se aproxima. Por entre gritinhos de "uhhhh" e "yeahhh" avista-se uma vara de porquitchonas selvagens do reino unido. Uma espécie migratória que ruma ao Algarve em busca do calor e que é uma das refeições principais dos linces ibéricos. As gazelas olham-nas de lado, comentando "Olha bem aquelas porcas", sabendo que o lince nacional tem alguma preferência por esta espécie loira e clara, principalmente devido à sua fama de refeição fácil.
É aqui que presenciamos a um dos espectáculos mais questionáveis da vida selvagem: linces adultos rodeiam porcas selvagens que aparentam ser ainda pequenos leitões menores de idade.
Já fumam e bebem e o álcool e tabaco só se vendem a maiores de 18 anos, pensarão os linces que atacam na mesma sem qualquer critério. Por vezes, as porquitchonas selvagens fazem-se acompanhar dos machos da sua espécie: estes andam em grupo, já temperados em vinha de alhos, vermelhos do sol, e apenas se preocupam em beber mais e arranjar confusão e, por vezes, dá-se a luta com bois almiscarados nacionais que guardam os bares e discotecas, quais protectores das zonas de repasto da savana e, normalmente, o porco selvagem inglês bate em retirada com o ego e o nariz ferido.
Já a noite vai longa e o sol ameaça em espreitar pelo horizonte a este, quando vemos as ruas e os bares encherem-se de abutres e hienas. Necrófagos por natureza, buscam as presas que ficaram para trás, que cambaleiam inebriadas e que já vomitaram o que tinham no estômago num canto escuro da calçada. Chegam-se com promessas de ajuda, perguntando se está tudo bem e se precisam de auxílio, mas tal não passa de uma emboscada para conseguirem a refeição que lhes foge há muito tempo, numa estratégia triste e desesperada de que só os machos são capazes.
O sol nasce e a cidade ganha outra vida, numa calma aparente e num ciclo que se repete, verão após verão, estação após estação, noite após noite.
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