20 de setembro de 2018

Bernardo vai para a universidade pública



Tal como nos filmes com sequelas, também esta série do Diário do Bernardo está a ser espremida mais do que devia. Para quem não leu, aqui ficam os links da parte 1, da parte 2 e da parte 3. A pedido de muitas famílias, aqui está a quarta parte desta epopeia do menino que foi transferido de um colégio privado para uma escola pública e que, agora, foi para a faculdade.

O relato que se segue pode ferir a susceptibilidade dos leitores mais sensíveis.

09:00h - Primeiro dia de aulas na faculdade. Infelizmente, não consegui entrar na Católica porque a minha média não foi suficiente. É o que dá ter-me mudado para a escola pública onde o ensino é muito pior, já que só isso explica ter passado de média de 18 para 10 em apenas um ano. Os meus papás ainda enviaram um envelope a alguns professores com uns vouchers, mas como são professores do público, não dão atenção às necessidades dos alunos.

09:30h - Foram os meus pais que me escolheram o curso porque eles é que sabem o que é bom para mim. Vim tirar gestão para depois ir para a empresa do meu pai, da minha mãe ou do meu tio. Convém ter um curso, fazer um estágio lá fora de um mês e depois voltar para uma dessas empresas para um cargo de gestão, para assim subir por mérito e não por cunhas.

10:00h - Estava a falar com uns colegas e disseram que iam ter dificuldades em pagar as propinas. Como são os meus pais que tratam disso nem sabia quanto eram e eles disseram-me que era mais de mil euros... por ano! Fiquei chocado, com um valor tão baixo é normal que o ensino seja inferior ao de uma privada.

11:00h - Ouvi um grupo de colegas a dizer que tinham bolsa e decidi iniciar conversa com eles. Perguntei logo em que acções estavam a pensar investir e eles disseram que não perceberam a pergunta, o que me leva a crer que isto dos bolseiros é como o SASE e também é um clube exclusivo.

12:00h - Fui abordado por um grupo de veteranos trajados que devem ser muito importantes porque já têm barba e cabelos brancos e disseram-me "Caloiro, enche já 10". Perguntei-lhes logo se sabiam com quem estavam a falar e de quem eu era filho! Riram-se e a seguir espetaram-me um ovo no rabo e disseram para eu cacarejar. Nas privadas as praxes são muito mais didácticas. Na Lusófona, por exemplo, têm desafios de natação em mar aberto.

12:30h - As praxes sempre serviram para conhecer algumas pessoas diferentes. Por exemplo, o Sandro é um caso curioso: está a tirar gestão, mas não tem nenhuma empresa da família ou amigos para depois lhe dar trabalho. Enfim, há pessoas que andam na faculdade a desperdiçar o dinheiro dos pais e depois queixam-se que não têm emprego.

13:00h - Fui almoçar à cantina, mas não havia menu degustação. Perguntei qual era a sopa e a senhora disse-me que era de legumes. Perguntei se nesses legumes estavam incluídos espargos e trufas brancas e ela disse que não sabia, que só lhe tinham dito que eram legumes. Lá comi a sopa e, garantidamente, não tinha nenhum deles. Vi que alguns colegas trazem comida de casa em recipientes muito pequenos, por isso devem ter quem lhes cozinhe pratos gourmet.

14:00h - Fui à secretaria pedir para me trocarem Matemática e Contabilidade Financeira por Inglês Técnico. Disseram que não era possível. Perguntei se podia passar logo para o mestrado já que tenho o curso de formação de hipismo e isso podia dar-me equivalência à licenciatura. Disseram que não era possível. Devem estar com algum problema informático no sistema, volto lá amanhã.

15:30h - Fiquei chocado! O laboratório de informática havia uns computadores topo de gama como eu nunca vi! Não eram Macs, mas eram uns assim com umas torres grandes e uns monitores enormes e profundos porque devem ser tão potentes que precisam de espaço para todo o hardware. Nem sei bem mexer naquilo, os meus papás compraram-me o novo iPhone XS, mas aqueles computadores já tinham o XP.

16:00h - Uma das piores coisas desta faculdade é que não tem lugar para estacionar perto. Falei com o João sobre esse assunto e ele disse-me que não trazia carro e que vinha num transporte que o deixava mesmo à porta da faculdade. Realmente, como é que não me lembrei disso!
Note to self: falar com o papá para me arranjar um motorista.

16:15h - O João, além do transporte privado, está no regime de trabalhador-estudante e pode faltar a algumas aulas e tem regalias nos exames.
Note to self: pedir ao papá para me colocar já a vice-presidente da empresa para ter mais facilidades.

16:30h - Ao contrário da escola, aqui já tenho alguns colegas do meu nível social. Por exemplo, todos os que vieram de fora de Lisboa são ricos e vivem todos em moradias de luxo, pois ouvi-os falar que pagam cerca de 600€ de renda e que dividiam casa com mais dez pessoas. Uma moradia de 6000€ ao mês deve ter piscina e SPA, certamente.

17:00h - Conheci uma rapariga que entrou com média de 19 para o meu curso. Perguntei-lhe logo o que estava ali a fazer em vez de estar a tirar medicina e ela disse-me "Porque acho que não se deve ir para medicina pela média, mas por vocação e gosto e eu prefiro este". Perguntei-lhe se os pais não a tinham obrigado e ela disse que não, que a deixaram escolher. Enfim, às vezes esqueço-me que há pessoas mais desfavorecidas que têm pais que não se preocupam com o futuro dos filhos.

Como sempre, arrepiante. Apelo a todos para que partilhem e alertem para este flagelo. #PrayForBernardos #JeSuisBernardoMartimLourençoSalvador




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