22 de outubro de 2019

Nunca se contraria o cabeleireiro



Desde puto que não gosto de ir ao cabeleireiro. Sim, vou ao cabeleireiro e não ao barbeiro até porque a barba faço em casa. Ir ao cabeleireiro é a prova de que o contexto é importante em tudo. Em que outra situação é que seria normal alguém lavar-me o cabelo como se eu fosse ou um rei da antiguidade ou o meu avô entravado? Mais, normalmente é um homem que me lava a cabeça e a situação é toda um bocado estranha. Não sei bem a etiqueta. Posso fechar os olhos e aproveitar a massagem ou depois disso vou querer ir ao IKEA escolher cortinados e ir ao brunch todos os domingos? Não sei.

Isto começa logo mal porque eu até lavei o cabelo em casa – ontem, é certo – mas deviam apenas borrifar-me para amolecer e não passar champô trinta vezes mesmo a dizer-me que estava sujo que nem um mineiro. Além disso, esta parte da lavagem é desconfortável fisicamente, estamos ali naquela poltrona, inclinados para trás com o pescoço todo torto naquele colar de loiça duro e há o momento em que ele nos pergunta se a água está boa.

Nunca está. Está sempre fria ou a queimar o escalpe, mas um gajo aguenta e diz "está bom" porque nunca se contraria o cabeleireiro.

Depois, vem a parte do corte e não sei se já pensaram nisso, mas nunca ficamos a olhar tanto tempo para a nossa cara como no cabeleireiro. Estamos ali meia hora, sentados a olhar para a nossa cara no espelho e começamos a descobrir imperfeições que nunca tínhamos visto: "Olha, tenho um olho mais fechado do que o outro". Giro; "Xiii a minha pele está uma desgraça". Que engraçado. Um gajo que devia sair com confiança reforçada de um corte de cabelo novo, sai de lá a sentir-se velho e acabado. Nisto, ele vai cortando o cabelo e eu penso sempre "E se eu precisar de espirrar? E se eu tiver daqueles espasmos musculares que às vezes temos mesmo quando ele me esta a acertar a patilha com a máquina e fico com uma autoestrada A0 de lado?". Esqueçam a queda livre, verdadeira adrenalina é ir ao cabeleireiro quando se está com tosse.

Quando me estão a cortar o cabelo sou uma espécie de supervisor, atento a todos os movimentos e micro-expressões faciais do cabeleireiro. Há sempre alturas em que eu acho que ele fez merda e está em controlo de danos a tentar disfarçar. Talvez seja trauma porque quando era puto, tinha uns 6 anos, cortaram-me a orelha. Fizeram-me um corte na orelha, vá, não foi um corte à Van Gogh. Jorrou sangue e eu chorei, enquanto a minha mãe berrava com a cabeleireira que dizia que a culpa era minha porque me tinha mexido. Era uma criança de 6 anos, se não me mexesse era sinal que estava morto.

No fim, podemos ter pedido só para aparar e o gajo passou pente zero na cabeça toda que não temos coragem de desafiar a autoridade dos cabelos. Ele faz aquela dança de ir buscar o espelho pequenino para nos mostrar a sua obra de arte numa vista de 360 graus e pergunta "Está bom?" e nós dizemos sempre "Sim, sim… está óptimo…", pagamos e vamos fechar-nos em casa durante duas semanas até não parecermos um caniche tosquiado por uma criança cega e maneta.


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PS1: Podem ouvir esta crónica em formato áudio no podcast Por Falar Noutra Coisa, neste link da Antena 3. Também disponível no iTunes, Spotify e essas plataformas todas.


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