Já estive perto de morrer 3 vezes. A primeira vez foi com 5 anos, demonstrando desde logo que era um miúdo precoce. Fui atropelado à saída da natação. Estava com o meu pai e ele disse-me que eu podia atravessar, eu atravessei e levei com um carro, que vinha da direita, mesmo no lombo. Lembro-me de abrir os olhos e ver a parte de baixo do carro, estava com a cabeça encostada à roda de trás, com o corpo para fora. O carro tinha andado mais um bocadinho e havia mioleira a escorrer pelo alcatrão. O senhor sai do carro, aos berros com o meu pai por me ter deixado atravessar. O meu pai aponta para o sinal que dizia que ele era obrigado a virar à direita e não podia ter ido em frente, como o fez. O senhor ficou branco e começou a pedir desculpa e a querer chamar a ambulância. Eu como sempre fui muito rijo dizia que estava bem, o carro tinha ficado amolgado devido ao meu torso encorpado das cerelacs com consistência de cimento que comia diariamente. Tinha uns arranhões na cara mas nada de mais, mas lá fui ao hospital. Cheguei lá e devem-me ter dado a pulseira verde, porque demorei montes de tempo a ser atendido quando podia ter uma catrefada de hemorragias internas. O meu pai começou a armar peixeirada com uma médica, ao ponto dela ficar com receio de uma agressão e chamar a polícia. Fui atendido que foi um mimo. A violência não resolve nada mas às vezes ajuda. Não tinha nada, puseram-me tintura de iodo nos arranhões da cara e mandaram-me para casa. No dia a seguir contei a todos os meus amigos o que se tinha passado, elevando-me ao estatuto de bestinha por ter amolgado um carro com esta banha que a terra há-de comer.
A segunda vez que estive perto de morrer foi engasgado com presunto. Sim, engasgado com presunto. Tinha cerca de 11 anos e como já disse, era um pequeno alarve a comer e presunto para mim só fazia sentido ser comido à mão cheia. Fatiazinha no pão era para maricas, 100g de presunto numa bolacha de água e sal partida ao meio, para fazer de sandes, é que era à homem. Sucede que mastiguei mal, ficaram dois pedaços de presunto mal mastigado nas pontas de um fio de gordura. Uma parte foi engolida e a outra ficou a travar na garganta, qual tampão de xixa sem conotação sexual. Comecei a sentir que não conseguia respirar, levantei-me e tentei beber água, mas a água não ia para baixo. Tentei puxar, mas com tanta gordura e pânico tudo escorregava, mais uma vez sem conotação sexual. A minha mãe estava em casa e deve ter ouvido o que se assemelhava a um javali a jogar à cabra cega e a ir contra os móveis da cozinha, veio ver o que se passava e passado uns segundos começou a perceber que eu estava quase a falecer. Nisto, tenta ela também tirar-me a comida do gasganete quando eu já lá tinha as mãos também. Resultado, fez com que os meus dedos fossem quase fazer cócegas no esófago e me vomitasse todo, saindo a rolha de presunto que me estava a matar. Não comi presunto durante muitos anos. Quão estúpido era ter morrido desta forma? Já estou a ver na minha lápide estar escrito:
Aqui jaz Guilherme, criança alegre, brincalhona e que gostava demasiado de presunto. Paz à sua alma e que no céu haja uma charcutaria para que ele seja feliz
A terceira vez foi exactamente na mesma rua da primeira, sendo que nem uma vez por ano lá passo e foi a primeira vez que lá passei de bicicleta. Há coincidências na vida do caraças, que quase nos fazem acreditar em coisas esotéricas. Mas depois pensamos com inteligência e vemos que era parvo acreditar nessas coisas. Foi há cerca de 1 ano, vou eu muito bem de bicicleta, proveniente da Buraca em direcção a Alvalade. Sim eu ando de bicicleta na Buraca, dá mais adrenalina que saltar de paraquedas sem paraquedas. Lá vou eu a passar por Benfica, numa estrada a descer e de repente sinto-me a voar, num semi mortal encarpado à frente e vou aterrar de cabeça no chão. Vou a raspar no alcatrão durante uns metros num pino sem braços. Fico estendido de barriga para cima a tentar perceber o que tinha acontecido, meio azambuado e naquela do "tu queres ver que vou ficar a comer Cerelac por uma palhinha, ainda por cima vai ter que ser sem os grumos que são a melhor parte.". Pessoas reunem-se à minha volta, a ver se eu estou bem mas lá no fundo a desejar que eu estivesse morto, só para poderem contar uma história mais interessante ao jantar com a família. Eu digo que estou bem e vou para me levantar mas não me deixam. Uma senhora diz que é médica e diz que não me posso mexer. Era giro eu estar tetraplégico e ela a dizer-me "Não se mexa, não se pode mexer". Eu lá convenci que estava bem e levantei-me. Estava de capacete integral, não, não é integral como o arroz e o pão, é daqueles que protege a cabeça toda e não só a moleirinha como aqueles que parecem um penico. Só andava com esse capacete quando ia para o meio dos montes em Monsanto, ou para locais mais arriscados, nunca para uma viagem curta e por estrada. No entanto, nesse dia levei e foi o que me salvou de ficar com a cara igual àquela vez que a Sónia Brazão estava a fazer lasanha, como podem verificar aqui na fotografia.
Lá tirei o capacete, depois de muito insistir com a senhora. A adrenalina começou a baixar e as dores a aparecer. Doía-me a cabeça, o ombro, as costas e estava com os braços e pernas todos esfolados. A maior dor foi pensar no sofrimento que ia ser tomar banho com os braços em carne viva, como podem verificar em mais esta fotografia artística. Aquele braço direito e ombro esquerdo pareciam umas posta mirandesa mal passadas.
Mangas à cava era por causa das feridas apenas, não é o meu cenário habitual. Veio ambulância, fizeram-me um curativo e uns testes a ver se eu não estava meio tantan das ideias. Lá resolvi os cálculos integrais e as derivadas compostas, recitei Fernado Pessoa de trás para a frente e fiz sexo com duas transeuntes, mãe e filha. Tudo impecável, não tive que ir ao hospital. Fui para casa e foram uns dias de dores e ardores sempre que tomava banho ou estava deitado na cama a tentar arranjar posição. Ah e é verdade, o que tinha acontecido foi que o meu pai tinha usado a bicicleta e não tinha apertado o pneu, estava só meio encaixado. Na descida, levantei o guiador para passar por cima de um buraco e desencaixou, a roda foi-se embora e o garfo aterrou no alcatrão, proporcionando toda uma catapultagem digna de um filme de acção indiano. Diz quem assistiu, que se fosse filmado era um sucesso 10x maior que o sai da frente ó Guedes. Não fui desta para melhor porque não calhou ainda por cima tendo em consideração que as faixas são apertadas e que no sentido oposto só circulam autocarros.
Moral da história, o meu pai anda há 30 anos a tentar matar-me. Mandou-me atravessar a estrada e sabotou-me a bicicleta. Só preciso de descobrir se foi ele que comprou o presunto, escolhendo propositadamente o que tinha mais gordura. Se for o caso já tenho motivos para ir apresentar queixa à PJ
Moral da história mais a sério, estar perto da morte lembra-nos que somos finitos. Que pode ser um carro desgovernado, um esquecimento ou um naco de presunto entalado na garganta. Pode ser de repente ou com aviso prévio de uma morte prematura. Pode ser hoje, pode ser amanhã, pode ser daqui a 70 anos a meio de uma orgia. Pode ser durante o sono e sem dor, pode ser numa cama de hospital com meses de sofrimento. O que é certo é que, pelo menos por enquanto, vamos todos ser ceifados. Não interessa pensar nisso mas o que é certo é que temos essa nuvem a pairar-nos que se vai adensando com a idade. Não acredito que haja nada depois da morte e não vivo bem com isso, mas acho que isso me faz tentar aproveitar melhor o tempo que cá estou, a não querer perder tempo com mesquinhices, intrigas e com pessoas que não interessam. Depois de morrermos nada interessa, se fomos felizes ou não, se aproveitamos a vida ou não, tudo isso deixa de interessar. A morte é a mais justa das coisas e só nos resta a nós rir dela, para quando ela chegar estarmos de sorriso nos lábios e lhe fazermos um manguito.
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