4 de janeiro de 2017

Do colégio para a escola pública: PARTE 2



Alguns estarão lembrados do diário do Bernardo, rapaz de boas famílias que foi transferido de um colégio privado para a selva, cheia de piolhosos, que é a escola pública. Agora que o 2º período começou, vamos a mais uma página do diário do menino que é obrigado a conviver com a ralé.

O relato que se segue pode ferir a suscetibilidade dos leitores mais sensíveis.

9:00h – Na primeira aula do 2º período falámos sobre as prendas que cada um recebeu este Natal. Ao início, fiquei boquiaberto ao saber que o Sandro tinha recebido um Porsche 911! Depois, lembrei-me que ele é repetente e já tem idade para conduzir. No entanto, fiquei com vergonha de chegar a minha vez e ter de partilhar que os meus papás só me compraram um Mercedes agora, quando já só me faltam três anos para tirar a carta. O Sandro disse que tinha trazido o carro e fiquei curioso para ver se era novo ou em segunda mão e, para minha estupefação, ele tira um Porsche, miniatura, da sua mochila vintage! Que alívio! Quando chegou a minha vez pude falar abertamente do meu Mercedes sem medo de olhares de cima para baixo.

10:00h – A professora de matemática já não é a mesma do período anterior. Ao que parece, a senhora dona professora Nelly teve um esgotamento nervoso e meteu baixa. Os meus papás sempre me disseram que os professores do sector público não gostavam muito de trabalhar e que metiam baixa sempre que podiam. Gostava de saber se ela tivesse de trabalhar tanto quanto minha mãe, que passa o dia a supervisionar o trabalho dos criados lá em casa e ainda tem tempo de ir todos os dias ao centro comercial.
Note to self: dar um abraço à mãe quando chegar a casa e dizer-lhe «A mãe é super.»

11:00h – No intervalo, vi o Wilson com um Game Boy azul bebé. Desde logo percebi que era o que eu tinha trazido no Natal para oferecer aos meninos pobres, como sempre fui habituado no colégio onde andava para nos fazerem sentir bem ao darmos os nossos restos a crianças que nasceram em berço de madeira carunchosa. Achando que aqui também seria tradição, e apesar de me parecer que será uma peça colecionável, trouxe o meu Game Boy. O desplante do Wilson: vem de famílias abastadas (relembro que tem solário em casa e faz parte desse grupo restrito e secreto que é o SASE) e ficou com a prenda que tão humildemente trouxe para alguém que precisa. É por pessoas como o Wilson que este país não avança.
Note to self: pedir ao papá para me comprar um Game Boy de cada uma das cores do arco-íris.

12:00h – Durante o recreio grande ouvi dizer que o Otaviano chumbou a todas as disciplinas, mas tirou cinco a educação física. Cheira-me que os pais dele devem ter conhecimentos no Conselho Diretivo. Vi-o a jogar badminton e aquilo não é serviço que se apresente. Também me disseram que a Soraia desistiu da escola. Ao que parece engravidou. Considero bastante estranha a razão que ela invocou: tinha de ir trabalhar. Enfim, quem é que dá emprego a uma rapariga de 14 anos? Deve vir de famílias com bons conhecimentos e que lhe conseguem boas cunhas, só pode.

13:00h – Fui almoçar à cantina e o almoço era bacalhau à Brás. Bacalhau é um peixe caro e parece-me um desperdício de dinheiro dos contribuintes que se coma duas vezes num tão curto espaço de tempo. Fui falar com a dona Custódia, a chefe das serviçais, a pedir explicações. Ela disse-me que foi o bacalhau que sobrou da ceia de Natal e que foi desfiado para o bacalhau à Brás. Compreendi e, apesar de ficar contente com o facto de não se desperdiçar comida, mostrei a minha indignação: já que iríamos comer restos, ao menos que optassem por uma mousse de bacalhau com camarão, salada verde e emulsão de pimentões assados com um molho de redução de vinho do Porto com espuma de baunilha e canela.
Note to self: relembrar o papá para reservar o Belcanto para o meu aniversário.

14:00h – Vimos o filme da festa de Natal cujo tema era «Kizomba e Kroketes.». Teve direito a uma encenação sobre o nascimento do menino Jesus. A Kátia fez de Maria e, dizem os boatos, que deixou de ser virgem atrás do pavilhão onde se dão as aulas de educação sexual. Jesus foi interpretado pelo Wilson e os três reis magos foram o Euclides, o Jefferson e o Kalu que presentearam o messias com um CD do Alselmo Ralph e uma dança de Kuduro. Pareceu-me inapropriado, pois toda a gente sabe que Jesus vinha de famílias pobres e não tinha solário em casa para ser tão moreno como o Wilson. Jesus era bastante pálido, de olhos azuis e cabelos louros, toda a gente sabe isso.

15:00h – Na aula de Religião e Moral, a minha preferida, falámos sobre o significado do Natal e da viragem do ano. Foi-nos pedido que fizéssemos uma composição com as nossas resoluções para o novo ano. Vislumbrei a folha da Maria Andreia e vi que ela tinha várias resoluções: desde a «Ajudar os meus pais nas tarefas de casa», até «Ter boas notas», passando por «Perguntar ao Bernardo se quer namorar comigo.». Corei e senti-me embaraçado: ela já tinha escrito quase dez resoluções e eu ainda só ia na parte «Resoluções para quê se basta pedir aos meus pais?». Sinto que vou ter má nota a Religião e Moral e ter má nota nesta disciplina pode colocar em causa a minha futura entrada na Juventude Popular. Quanto a namorar com a Maria Andreia, está fora de questão! Ando de olho na Jéssica que é do SASE, a ver se isso me facilita a entrada no clube.

16:00h – Tive a primeira aula de orientação escolar onde, depois de alguns testes de aptidão, nos dizem qual a área que devemos seguir. A psicóloga, depois de ver os meus resultados, disse-me que a minha vocação passaria por artes ou humanidades. Ri-me. Toda a gente sabe que a minha vocação é ir trabalhar para a empresa do papá e, para isso, tenho de tirar um curso de gestão numa privada qualquer, fazer duas semanas de estágio (para provar o meu valor), e depois ser director. Se, por algum motivo, algo não correr bem, haverá sempre outras oportunidades com esse curso. Ouvi dizer que a empresa do tio Martim está a contratar, por exemplo. Estas aulas de orientação são uma perda de tempo para pessoas que fazem o seu próprio destino sem precisar de ninguém para os ajudar.
Note to self: mostrar ao papá o resultado do teste vocacional para o fazer sorrir.

17:00h – O Diogo e o Rafael foram suspensos porque estavam a vender droga no intervalo grande. Sempre achei estranho o facto de eles dizerem que não tinham pais ricos, mas andarem sempre com roupa de marca. Ao início, pensei que fossem as ligações políticas da Lista A que os tivessem feito subir na vida por mérito próprio, mas, ao que parece, era dinheiro proveniente de fontes ilegais. Enfim, andam os políticos e os grandes empresários a tentar dar um rumo a este país, e depois anda esta gente, que nem é brasonada, a obter rendimentos não declarados.

18:00h – Os meus pais vieram à escola para a reunião de pais. Estão possessos por eu não ter tido tudo cincos no 1º período. Notei que estavam insatisfeitos com o meu aproveitamento escolar por só me terem oferecido o tal Mercedes e terem ignorado o meu pedido de também receber um iPhone 7 porque estraguei aquela película do ecrã do meu iPhone 7.

18:30h – Os meus pais saíram da reunião e pude ver em suas caras que algo não tinha corrido bem. O meu pai olhou-me nos olhos e disse «Bernardo, parece que para ter tudo cincos vai ter, efetivamente, de se esforçar e tirar boas notas nos testes. Bem tentei dar uma prenda à sua diretora de turma, mas, pasme-se, ela disse que as notas não podem ser positivamente influenciadas através de auxiliares de empatia. Disse-me que isso seria "suborno". Não percebo esse conceito. Tenho de ir ver ao dicionário o que essa palavra significa.» Enfim, andaram os meus pais a trabalhar para ter dinheiro e a professora não tem isso em conta aquando de dar as notas. Sempre me disseram que nos colégios privados se valorizava mais o sucesso.

Mais uma vez... arrepiante. Resta-me deixar, novamente, o apelo a todos para que partilhem este texto e alertem para este flagelo. #PrayForBernardos #JeSuisBernardoMartimLourençoSalvador




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