2 de maio de 2018

Os benfiquistas são uns ingratos



Na verdade, o título do texto foi só para criar o caos: os adeptos de futebol, seja que de clube forem, são uma cambada de ingratos. A velha máxima de "bestial a besta" aplica-se quase todos os anos com jogadores e treinadores de todas as cores, mas, este ano, o principal visado é Rui Vitória, treinador que deu dois campeonatos ao Benfica, que está a ser contestado por muitos benfiquistas que exigem a sua saída. Ingratos. Sabem quantos treinadores eu vi, em toda a minha vida, darem dois campeonatos ao Sporting? Nenhum. Percebo que os benfiquistas estejam mais mal habituados, visto ganharem mais vezes, mas parece-me que a ingratidão é o pior dos sentimentos. Curiosamente, é um sentimento presente em quem é mimado e habituado a ter tudo. Alguns dirão que Rui Vitória foi campeão por demérito dos adversários directos, mas o que é certo é que no primeiro ano fez recorde de pontos na liga portuguesa; terá sido mérito do antecessor que havia montado uma boa equipa? Jorge Jesus diz que sim e os benfiquistas que agora criticam Rui Vitória também o dizem indirectamente ou estarão a admitir que houve ajudas externas, não sei. Aliás, se alguém devia ser despedido é quem (alegadamente) andou a entrar em citius e a tentar pressionar árbitros. A ser verdade, esses gajos é que são uns incompetentes, porque ser corrupto e ganhar é de homem, ser corrupto e não ganhar nada é vergonhoso.

Neste momento, estão alguns benfiquistas a espumar-se a ler isto e os portistas a rir até eu referir o apito dourado e as escutas que todos sabemos. Agora, também alguns portistas se espumam. Falta ofender os sportinguistas sem fair-play: para o ano é que é (x17).

O futebol, como qualquer paixão, exacerba o melhor e o pior das pessoas; tal como alguém que sempre levou uma vida pautada pelo civismo e respeito pode cometer um crime passional, ou alguém egoísta é capaz de dar a vida por alguém que ama, no futebol acontece o mesmo. Acontece, também, aquele fenómeno que só vemos nas relações românticas: esquecer todo o bem que foi feito quando algo de mal acontece. Numa amizade, um erro de um amigo não apaga as vezes que ele esteve lá para nos apoiar, mas numa relação amorosa, um tampo da sanita levantado faz esquecer a loiça lavada, ou uma falta de atenção ao novo corte de cabelo - dois centímetros podados - faz esquecer as milhares de vezes que foram tecidos elogios, mesmo ao acordar, com olheiras e o bafo a cão molhado.

A linha entre a exigência e a ingratidão é ténue e percebo que pendamos mais para a primeira em profissões que envolvam vidas de pessoas. Um médico não pode salvar mais vidas do que as que mata por negligência, simplesmente não pode matar por negligência; parafraseando Chris Rock, um piloto de avião não pode, mesmo que esporadicamente, espetar o avião no chão; uma prostituta não pode, mesmo que só às vezes, ter sida. Agora, tanta exigência com o futebol? Quantas vezes um clube não foi campeão e isso afectou drasticamente a vida dos seus adeptos? Quantos não conseguiram pagar contas depois de uma derrota? Imaginem esta exigência aplicada aos políticos: político tem dois anos de excelente governação, mas ao terceiro claudica e a população exigiria a sua demissão e não votaria nele uma e outra vez. Na política, podes errar, ser preso, roubar, que os adeptos ficam do teu lado. Percebo que comandar os destinos de um país tenha muito menos importância do que comandar os destinos de um clube que nos dá em troca as alegrias das vitórias e dos golos, até porque esses golos fazem esquecer o parco ordenado.

Não nasci com o gene do fanatismo, por isso custa-me a perceber. Gosto de futebol, mas prefiro ver um Real Madrid x Barcelona do que um Sporting x Tondela - neste momento já se espuma o pessoal de Tondela, também. Até ao fim do texto conto abranger toda a I Liga - Já gritei e emocionei-me com futebol, especialmente com a selecção, celebrei os dois campeonatos que vi o Sporting ganhar, mas nos anos que não ganho não fico minimamente triste, caso contrário andava sempre deprimido e, permitam-me, a minha vida tem coisa muito mais interessantes do que festejar ou chorar a vitória de uma empresa com a qual simpatizo, apenas e só, por questões geográficas ou de envolvência cultural ou familiar. Aliás, é por isto que não percebo o fanatismo futebolístico, especialmente quando entra em ofensas aos adversários: só és de um clube específico porque calhou, podias estar do outro lado. O fenómeno já deve ter sido estudado por pessoas que estudam fenómenos, mas nunca percebi a transformação que ocorre quando se coloca um cachecol e se insere um indivíduo, aparentemente sem distúrbios mentais, numa meio de uma tribo de cachecóis da mesma cor. Do doutor ao trolha, chovem chorrilhos de caralhadas, manguitos desfraldados no ar, e ofensas à mãe de toda a gente que têm um cachecol de outra cor.

Só vejo este fanatismo cego na religião. Tal como os católicos só vêem os podres dos muçulmanos, e vice-versa, também no futebol, só o clube adversário é que rouba e é beneficiado. Infelizmente, na religião, não se aplica a mesma exigência/ingratidão que vemos no futebol. Imaginem o que seria os adeptos religiosos exigirem a demissão de padres pedófilos em vez de assobiarem para o lado. Imaginem o que seria deixarem de pagar quando as preces não são atendidas. Imaginem o que era matarem outros porque acham que o seu Deus tem a pila maior do que o Deus adversário. Ah, nesta parte a religião é igual ao futebol.

O bom que era que exigissem a demissão de Deus como exigem a demissão de treinadores.

É que Rui Vitória deu dois campeonatos ao Benfica, enquanto que Deus nunca fez nada de jeito por nós. Deus é um treinador ausente como era o meu professor de educação física do 9º ano que nos dava uma bola e ia para o seu gabinete enrolar-se com outra professora. O futebol e a religião estão, ainda, ligados pelas orações e preces que a esmagadora maioria dos jogadores faz antes de entrar em campo. Se pedirem que não se lesionem, ainda vá que não vá, embora não sirva de nada, agora pedirem para a sua equipa ganhar? Que falta de respeito para com Deus. E se os adversários rezam igual, para onde se vira Deus? Não me parece que Ele tenha equipa preferida e diria que nem é adepto de futebol e que prefere golf ou ténis porque é praticado por pessoas de boas famílias que são as preferidas dele.

Em suma, não acho que o futebol seja só um desporto e admito que tem uma importância maior do que aquilo que é jogado em campo. Pode aproximar pessoas e nações, pode subir a autoestima de um país, pode dar alegrias e distrair-nos dos nossos males, mas não percebo quando esse poder do futebol é usado para tudo o que é oposto a isso. Deve ser bom amar assim alguma coisa. Amar ao ponto de ficar transtornado quando se perde. Amar ao ponto de ter o símbolo do clube na fotografia de perfil de Facebook. Amar assim alguma coisa é sempre bom, até ao dia em que não somos correspondidos.




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