24 de junho de 2013

Rascunhos


O prato frio, cheio, o copo vazio de uma e outra vez, vezes demais. Curioso como a fome se bloqueia nestes momentos enquanto a sede não, pelo menos aquela que envenena o ser embora parecendo que limpa a alma por momentos. A sala está como sempre, vazia, não que não seja acolhedora e confortável, mas para ele será eternamente despida da vida que outrora a decorava. Os candeeiros de pé alto comprados em Marrocos, o sofá preto, de pele, o tapete persa oferecido que ela nunca gostara, a mesa de jantar mogno e as cadeiras a condizer. Nem a magnífica vista para Lisboa, para o coração da cidade, lhe enchia o seu

A mesa estava posta, era hora de jantar, mesa para dois eternamente, mas apenas um se sentava nela, o seu prato em frente ao dela, o dela virado para a janela como fazia sempre questão, no prato uma pizza congelada que estranhamente não era a sua comida favorita, vezes sem conta lhe ralhava – “olha que isso faz-te mal” – dizia ela em tom de brincadeira mas com olhar preocupado, de consciência avançada para a sua idade, trocando de papel por momentos.

Ambos os copos vazios, um deles com cheiro a álcool ainda, não demoraria a voltar a encher-se como se de uma vontade própria fosse provido, provocando a sensação de fuga, como se com o esvaziar do copo se criasse outro vazio, que impedisse de sentir, de lembrar, de sofrer, de apodrecer por dentro todos os dias. Ajudava-o a dormir, chegava a cama e conseguia não estar horas a mudar de posição e a pensar no que podia ter sido diferente, no que podia ter feito de forma diferente, nos seus olhos a apagarem-se, a alegria que os inundavam a esvair-se em lágrimas deixando-os secos, baços, vazios como ele. Adormecia mas os sonhos eram sempre os mesmos, hoje então seria o de sempre, aquele pesadelo que o atormenta há 10 penosos anos, 10 anos agora, hoje, 10 anos passados o mesmo pesadelo que não acaba, que não acorda. Por vezes pensa o que o impede de acordar desse pesadelo. Nem ele sabe, mas sabe que ela não quereria isso.

Luís, 59 anos, cirurgião cardiovascular, curiosa profissão que o coloca no papel de curar as doenças do coração, quando o dele está morto, bate involuntariamente, bombeia o sangue necessário para sobreviver mas não o mantém vivo. Nesta consoada de Natal ainda menos, o frio lá fora nada é comparado com o frio lá dentro. Faz hoje 10 anos que tudo aconteceu, que tudo mudou para sempre, para um estado final, sem reversão, terminal eterno.

Luís, de estatura média e porte respeitoso, cabelos meios grisalhos bem cuidados, embora não disfarce as entradas que já possui, da idade, da vida que levou, das preocupações constantes e exigências diárias do seu trabalho, dela que já não é. Pesando tudo nem se encontra mal conservado para a idade. Conserva-se em tristeza, talvez por lhe ter morrido uma parte há 10 anos, que de morta que está não envelhece

Termina a refeição, o seu prato vazio nem se chegou a encher, o seu copo e garrafa iguais. O prato em sua frente frio, mais uma vez para o lixo. O que enchia a garrafa inunda-lhe o corpo, começa a sentir a embriaguez, o perfume do álcool no seu cérebro, a visão afunilada que o ajuda a ignorar o que se passa a sua volta e dentro de si. Uma vez mais, limpa e arruma a mesa e tenta recompor-se, por fora pelo menos, por dentro não consegue, nem tenta, está melhor assim, dormente. Luís sabe que pode ser chamado a qualquer hora para o hospital, S. José, nome de santo, perto de sua casa onde exerce a sua profissão com distinção há 30 anos. Nem ele percebe como ainda o consegue, como sempre que é chamado tem a capacidade de se recompor da ebriedade. Nunca aconteceu ser acusado de negligência, embora já lhe tenham morrido pacientes nas mãos de peito aberto. Culpou-se como se culpa de tudo e quis, por momentos, abrir o seu peito também e confessar que havia bebido, que talvez fosse responsável. Mas não foi preciso, os relatórios ilibavam-no sempre, mortes sempre inevitáveis mesmo pelo mais sóbrio dos cirurgiões. Mortes de pessoas que apesar de verem e saberem serem ínfimas as suas probabilidades enquanto fechavam os olhos devido a anestesia, faziam-no com um sorriso, com uma esperança que aqueles 1% fossem eles, mas quase sempre não eram. Esperança… palavra idílica e utópica pensava Luís. Como nele o ditado que afirma que é a ultima a morrer não fazia sentido, nele já tinha morrido há muito e ele não. Pelo menos não legalmente. Luís não sabia bem o que o confortava mais, se é que se pode falar em conforto, naquele conforto que obtemos quando por momentos nos esquecemos que estamos desconfortáveis. É isso talvez. A morte de um paciente, de uma vida, os olhos dos familiares e amigos a adivinhar o que ele vai dizer quando aparece ao fundo no corredor para lhes dar noticias da operação. Sabem sempre logo, não acreditam ainda mas sabem. Nem depois de ele dizer aquelas palavras que ele já ouviu também, acreditam. Demora tempo a aceitar a morte de um ente querido, demora o tempo que for preciso, o tempo que a nossa mente necessita para substituir a ultima memória viva da pessoa, alegre quase sempre, por uma lápide mental, um jazigo cerebral. Só quando isso acontece acreditamos que é de facto verdade, que não há volta a dar, que não existe nenhum mecanismo de mudar o que é real. Antes, há mais de 10 anos atrás, esta era a parte que lhe custava mais, ver o sofrimento na cara destas pessoas, muito mais do que o peito aberto com o coração parado, mil vezes mais, a dor profunda de quem ama e perdeu. Os abraços entre os que cá ficaram, as lágrimas acumuladas nos ombros, as palavras de conforto que ele não podia dar. Eles ainda diziam por vezes “obrigado por ter tentado tudo o que era possível". Que generosidade de alma dizer isso, não o culpar mesmo sem culpa, não fazer dele o responsável, tal como quem acredita em Deus nunca o faz responsável pelo que de mal acontece. Milagre é bondade de Deus, tragédia é Deus a escrever direito por linhas tortas, na sua eterna sabedoria e bondade. Luís detestava a ideia de Deus, não lhe fazia o mínimo sentido, nem podia, quem abria, cortava, rasgava, partia, cosia, curava, eram as suas mãos e os seus utensílios. Deus não era para ali chamado, se o fosse ele não precisava de trabalhar. Isto tudo era antes. Agora, a angústia, dor e sofrimento destas pessoas quase que maqueavelicamente o consolam, um conforto mórbido no sofrimento dos outros que o fazem esquecer o seu por momentos.

(há-de continuar...)




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