16 de dezembro de 2015

Tratar os filhos (e as pessoas) por você é parvo



«Tu? Andei contigo na escola para me tratares por tu? Respeitinho é bom e eu gosto.» é uma frase muito utilizada neste nosso belo país de gente respeitadora. Desde sempre me fez alguma confusão tratar as pessoas na terceira pessoa quando elas estão presentes. Agora, ainda pior visto que muitas vezes já sou eu o alvo desse tratamento devido aos dois cabelos brancos que já figuram na minha outrora farta cabeleira. Faz-me comichão na moleirinha quando me tratam por você, sejam mais novos, mais velhos, ou nascidos no mesmo dia e ano do que eu. Faz-me sentir velho, mas acima de tudo, lembra-me que vivemos numa sociedade de respeitinho camuflado em floreados hipócritas. Uma vez, fui levar o meu irmão, que tem menos nove anos do que eu, e uns amigos para o Bairro Alto, e um deles diz-me «Agora pode virar ali.». «Pode virar?», disse-lhe, «Trata-me por tu que não sou assim tão velho!» e ele responde «Ok, sócio.». Parei o carro e dei-lhe uma sova de cinto. Mentira, fiz só um olhar reprovador pelo retrovisor, à taxista salazarista, e ele percebeu que à vontade não é à vontadinha já que «o respeitinho é bom e eu gosto.»

Quando somos pequenos não tratamos ninguém da nossa idade que acabámos de conhecer, por você. Quer dizer, se calhar até acontece em colégios todos modernos, mas garanto-vos que nas escolas da Damaia e da Buraca isso não acontecia. E ainda bem. Agora que penso nisso, fui abordado algumas vezes para a prática do assalto com frases assim: «Você aí. Oh! Oh! Tou a falar com você aí de ténis da Nike novos...». O respeito e educação está nas palavras e nos actos e não na escolha entre a 2ª e a 3ª pessoa do singular. 


Um «Obrigado, uma boa tarde para ti!» não me parece que seja menos educado, respeitador, ou até mesmo cordial, do que um «Olhe, vá para o caralho que o foda, a si e à senhora sua mãe, sim?».

Tenho para mim que as pessoas que valorizam o trato por você por parte de pessoas que não conhecem, são as pessoas que menos respeitam as outras durante o dia. Aposto que os senhores de Mercedes que estacionam à mamute estrábico, que se metem nas rotundas à antílope disléxico, e que não usam piscas qual pirilampo introvertido, são os mesmos que dizem «Tu? Não andei consigo na escola. Não lhe deram educação em casa? Respeitinho é bom e eu gosto!». Por falar em educação em casa... e os pais que tratam os filhos por você? Eram duas chapadas à padrasto naquelas ventas manientas. Serem os filhos a tratar os progenitores na terceira pessoa já me faz confusão, mas a moda parva de alguns pais tratarem os filhos por você, mesmo que ainda petizes, é só estupidez em estado bruto. Muitas vezes, vezes demais, ouve-se nas praias da linha, de Cascais e não de Sintra, frases como estas:
  • «Bernardo, que maçada! Já lhe disse para não atirar areia para cima da minha toalha Chanel! Quer levar umas palmadas?»
  • «Pureza, querida. Não meta a banana toda na boca dessa forma que as pessoas olham. Dê cá que a mãe esmaga.»
  • «Fábio Rúben, está aqui está a levar um bofetão na tromba, seu filho de uma puta.»
O terceiro é um novo rico que ainda não percebeu que para ser chique não basta mudar a pessoa do tempo verbal, tal como para ser educado não basta andar em bons colégios.

Eu trato os meus avós maternos por você, no entanto, o meu irmão e os netos mais novos já os tratam por tu e não me parece que os respeitem menos. A bem dizer, como eles estão, podia tratá-los por Wilson e Jamila que eles não iam notar a diferença, já que com as doenças que acarretam nem se devem lembrar que são brancos. São as únicas pessoas da minha família que não trato por tu e nem sei bem porquê. Talvez seja por os ver tão poucas vezes e estar mais habituado a falar deles na terceira pessoa que ausência exige. Já os meus avós paternos, esses trato por senhor porque tenho sempre de meter uma cunha com Deus para falar com eles. Fora minha família, obviamente que também trato pessoas por você, em determinadas situaçõe e contextos, especialmente profissionais. Claro que se for ajudar uma senhora de idade atravessar a estrada, não lhe vou agarrar por um braço e dizer «Anda lá pá! Mais rápido! Até parece que tens tempo a perder!». Claro que não, trato-a por você porque foi o que me foi imposto pela sociedade. Só estou a dizer que é uma palermice de todo o tamanho essa invenção que não é mais do que uma bengala carregada de estereótipos que tentam mascarar a hipocrisia.


É um bocado como assumir que quem usa fato e gravata é mais profissional e credível, quando os maiores ladrões que temos visto são administradores de bancos e políticos, sempre muito bem engravatados.

Já trabalhei numa empresa em que toda a gente se tratava por tu menos quando se dirigia ao chefe do departamento, qual grande líder que merece mais respeito do que os comuns dos colegas mortais. Ironicamente, ou não, ele era a pessoa que mais vezes faltava ao respeito aos outros. Uma vez, já passava da hora de saída há algumas horas, estava um gajo novo sentado, todo recostado, e passa esse chefe e pergunta-lhe «Boa vida, hein?», no seu tom sobranceiro e altivo, ao qual o rapaz respondeu, sem saber que ele era o chefe, «Só se for a tua!». Épico. Passados dois dias, esse rapaz foi convidado a abraçar novos desafios, que é a forma politicamente correcta de agora se dizer que foi para o olho da rua. Há um caso curioso que é o da minha namorada que trata por você uma das colegas de trabalho, por imposição da chefia que diz que dá bom aspecto aos subalternos e clientes. Devido a esse hábito tratam-se por você também fora do trabalho. Já é parvo que chegue, eu sei, mas reparem que são meninas para ir para os copos juntas beber o néctar do Baco aos baldes de shot! Então, é sempre curioso observá-las já pinguças a dizer «A doutora já está aí a andar toda torta!» e a outra a responder «Eu!? Não, não. A doutora é que está aqui está a dançar Kizomba!». É poético deixá-las ir à frente e vê-las ao longe, todas doutoras aos esses e aos duplos v's que é quando tropeçam nos saltos e dão de queixos no lancil e ouvir «A doutora é que se agarrou a mim!», «Não, não. Com todo o respeito, a doutora não sabe beber.».

Voltanto ao tema: porque  raio é que tratar alguém por tu é considerado de mau tom em muitas situações? Porque é que eu não posso apertar a mão ao Cavaco e dizer «Estás bom, Aníbal?» sem que achem que estou a faltar-lhe ao respeito? Se houvesse mais proximidade entre todas as hierarquias da sociedade, se calhar não havia tanto a cultura do medo e do respeitinho que nos entala os testículos para que não questionemos a autoridade. Isso percebe-se na religião, porque as pessoas também se dirigem a Deus na terceira pessoa, mas do plural porque para Ele o singular é pouco. Se Deus é nosso pai e irmão, então tratá-lo assim é só parvo. A não ser que Deus seja de Cascais. Já o estou a ver depois de criar o universo, enquanto afasta o cabelo à playmobil dos olhos: «Pronto. Está feito. Agora vou criar o Martim e a Matilde para dar início à Humanidade! Matilde, esteja sossegada! Largue a cobra do menino Martim!». Era parvo, não era? Então tratem lá Deus por tu que se alguém na relação está a faltar ao respeito é ele, nem que seja porque é um pai ausente.


Deus é amor e o amor trata-se por tu. Chupa Francisco! Também sei dizer coisas bonitas e poéticas!

Os ingleses não têm tanto este problema, é «you» para toda a gente e não há cá mariquices destas. Ficam só na dúvida de quando utilizar o «sir», «miss» e o «madafaca», mas já é bem melhor. Acho que esta mania surgiu porque algures, numa caverna portuguesa longínqua, havia um chefe ancião da tribo que falava de si na terceira pessoa, todo cheio de manias de importância e numa frustração antiga de não ter sido jogador de futebol: «O Zé acha de muito mau tom as pinturas rupestres que fizeram dele com a pila pequena. O Zé está descontente e acha que como punição, deverá efectuar a prática do salto ao eixo pelado com as damas dos engraçadinhos.» Os elementos da tribo ficaram confusos ao ouvir o Zé falar daquela forma e começaram a falar com ele sempre na terceira pessoa para não o contrariar e verem as suas mulheres a serem possuídas pelo seu micro pénis marmóreo. E, assim, nasceu a moda parva de tratar os superiores, hierárquicos ou etários, por você. Nem sei como é que isto não vem nos livros de história.

Resumindo, se algum dia nos cruzarmos tratem-me por tu e não me façam sentir velho. Eu vou fazer o mesmo convosco e se por acaso ficarem ofendidos e acharem que é uma falta de respeito, então é sinal que a conversa pode ficar logo por ali e escusamos de perder tempo. Se forem comentar porque estão ofendidos com alguma coisa que eu escrevi neste texto, lembrem-se que o respeitinho é uma coisa muito linda.




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