24 de dezembro de 2015

A minha consoada de Natal



Estou a caminho da Guarda, terra da minha mãe, e prevejo que a minha Consoada vá ser algo deste género:

18:30 - Chegar a casa dos avós, encontrar lá pessoas que não vejo desde o Natal passado e a quem, mesmo tendo eu já 31 anos, vou ouvir dizer: «Tu não páras de crescer?»
18:45 - Depois de cumprimentar todas as pessoas, vai haver outra tia que vai dizer: «Ai, essa barba, meu filho. Pareces um sem-abrigo.» Eu contenho-me e não falo do buço dela.
19:00 - As crianças vão estar de volta da árvore a tentar descobrir o que está embrulhado para elas. Já sei que para mim são meias, pijamas ou, na loucura, um envelope com dez euros.
19:30 - O meu avô queixa-se de que a comida não está na mesa. Grita para a minha avó: «Maria, o bacalhau já devia estar pronto!» Os mais novos riem-se maliciosamente.
20:00 - Começa-se a jantar. Os mais pequenos choram, porque não gostam de bacalhau; outros, não gostam da sopa; e o tio Alfredo vai esvaziando a garrafa do vinho sem ninguém dar por isso.
20:30 - O meu avô acaba a sopa, que demorou trinta minutos a comer, porque comer sopa e ter Parkinson é uma espécie de prova dos Jogos sem Fronteiras.
21:00 - A minha avó olha fixamente para alguns dos netos, a tentar perceber quem são. A Alzheimer é tramada e o facto de serem quase vinte netos também não ajuda. 
21:15 - A minha avó pergunta ao meu avô se está com frio, pela trigésima vez, não se lembrando de que ele está a tremer, mas é da Parkinson.
21:17 - A minha avó pergunta, novamente, se o meu avô tem frio.
21:30 - O tio Alfredo abre outra garrafa e enche o copo todo, com medo de que não haja mais. Dizem-lhe que há outras garrafas na despensa. Fica mais feliz do que uma criança a abrir um presente.
21:35 - O meu avô refila que o bacalhau está salgado. O tio Alfredo passa-lhe o sal na brincadeira. O meu avô não repara, mete sal e deixa de se queixar. Era fita.
21:45 - O novo namorado de uma prima tenta ser engraçadinho e conta histórias que só lhe interessam a ele. Reviro os olhos e junto-me ao tio Alfredo na bebida.
22:00 - Está na hora da sobremesa. Há uma luta entre todas as tias, a ver se a sobremesa que elas fizeram é a preferida de todos. Criticam as sobremesas umas das outras ao estilo Hell’s Kitchen.
22:30 - Os putos levantam-se todos da mesa e as tias ficam a arrumar tudo, enquanto os homens ficam a beber whisky e a falar de política e de futebol. Há sempre um tio que nem sabe o que é um fora-de-jogo, mas que tenta mandar bitaites, do género: «Pois, eles assim não vão lá. Têm de mudar a táctica.» Os outros olham para ele de lado e ignoram, menos o tio Alfredo, que lhe chama maricas.
00:00 - Visto-me de Pai Natal e vou estragar os sonhos das crianças. Sou uma espécie de ditador do Pólo Norte e quase obrigo as crianças a sentar-se e a dar a pata. Há sempre alguma que fica a chorar.
00:15 - Um dos putos chora porque, afinal, era outro Action Man que ele tinha pedido. Digo que a culpa não é do Pai Natal e que vá pedir explicações à mãe. A mãe diz que há crianças que nem um brinquedo recebem.
00:30 - O tio Alfredo já bebe whisky da garrafa e repete a mesma piada todos os anos: fingir que está a dar uma prenda nova à minha avó, que ela acabou de receber. A minha avó, efectivamente, pensa que é uma prenda nova.
00:35 - A minha avó é como os gatos e fica mais fascinada com os embrulhos e com as caixas do que com as prendas em si, que, invariavelmente, são mantas, casacos e montagens de fotos da família que seriam iguais se fossem de outra família qualquer.
00:45 - Uma das crianças diz que quer brincar ao Jogo da Operação com o avô. O meu avô perde em menos de dois segundos. A criançada ri-se e diz que o avô não pode abrir bebidas com gás porque salta tudo.
01:00 - Vão deitar os meus avós. A minha avó, sempre sorridente, diz que foi um jantar de Páscoa muito bonito e diz ao meu avô: «Dorme bem, António.» O meu avô chama-se Joaquim.
01:30 - O tio Alfredo já dorme e ressona no sofá.
02:00 - Começa o corte e costura: diz-se mal daquela tia que está chateada com os irmãos e não veio para o Natal.
02:02 - É a minha deixa para ir para os copos com os poucos primos que não têm de ficar em casa a cuidar dos filhos. Vou cheio de frio, mas com o coração quente por causa de mais uma feliz Consoada.

Este texto comprou-me algumas guerras familiares, por isso, era giro partilharem com força só para chatear as pessoas que se ofendem por tudo e por nada. Obrigado.

Feliz Natal a todos.




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