Há uns tempos mudei-me da Buraca, onde vivi desde que nasci, para Alvalade. Tem sido um grande choque cultural e esperei algum tempo até fazer este texto para que lhe fizesse justiça. Desde já, engane-se quem pensar que esta mudança se deve ao facto de agora estar bem na vida. Mentira, a minha namorada tinha comprado casa na altura da crise e pagamos menos ao banco do que se pagaria por um quarto sem janelas em Alvalade. Isto é só para dizer que preciso que continuem a comprar os meus livros e bilhetes para os meus espectáculos para ver se um dia deixo de andar num Clio de 2002.
Voltando à mudança da Buraca para Alvalade, quase ao estilo do Cabaret para o Convento. Desde logo, a banda sonora de Alvalade é completamente diferente e deixei de saber quais as kizombas que estão a bater neste momento. Na Buraca, de cinco em cinco minutos, havia um carro a passar, de janelas abertas, com um excelente sistema de som com subwoofer mais caro do que o próprio carro, a dar música a toda a rua qual discoteca ao domicílio. Em Alvalade, não há nada disso. Os próprios carros são diferentes; não me lembro da última vez que vi um Saxo cup artilhado com um gajo de boné a conduzir encostado ao volante e uma gaja à pendura, com unhas de gel pontiagudas e adornadas com piercings, brilhantes e desenhos a condizer com os decalques do capô da viatura.
Na Buraca, é comum os mitras pedirem-te dinheiro na rua. Não é bem pedir, vá, é sugerir para teu bem que dar uns trocos faz bem à saúde. Em Alvalade, também se pedem trocos, mas são os malucos do Júlio de Matos. História verídica: estava no café e vem um casal de tantans da cabeça pedir dinheiro para comer; dei-lhes dois euros e eles, sem hesitar, vão directos comprar tabaco à máquina que estava mesmo ao meu lado. Zero vergonha. Na Buraca, os assaltantes eram mais honestos e estavam sempre preocupados com a pontualidade porque todos os assaltos começavam com um «Tens horas? Esse relógio é fixe… deixa ver melhor». Claro que em Alvalade também há muitos mitras! O que mais se vê é pessoal com a bolsa à cintura, vestidos com Lacoste e com aquele andar da pausa meio a mancar, mas não são bem mitras, são velhos. Começo a ter a teoria de que um mitra reformado é um velho de Alvalade: em vez de andarem com o telemóvel a dar música aos altos berros sem auscultadores, andam com a telefonia a ouvir a bola; também usam as calças descaídas devido à fralda; têm problemas de memória, não por causa da ganza, mas por causa do Alzheimer; conduzem sem qualquer respeito pelo código da estrada e ainda no outro dia vi um senhor numa rotunda em sentido contrário, tal como via na Buraca tantas vezes os mitras do tuning a fazer.
Outra semelhança entre os mitras e os velhos é que ambos te passam à frente na fila do supermercado.
Por falar em mitras, sempre achei estranho que o pessoal que vende droga na rua se vista à vendedor de droga na rua. Parece-me de traficante pouco inteligente. Conhecia um gajo que transportava quilos de droga no carro e que achava que a melhor forma de passar despercebido e a polícia não desconfiar era ter um Fiat Punto amarelo, ir sempre com boné, brilhantes nas orelhas, sobrancelha com cortes e filtro atrás da orelha. Claro que foi preso. Burro. Pá, veste um pólo e um sapato de vela para disfarçar, meu pequenino mitra. Se bem que se és parado pela polícia num Punto amarelo e estás vestido à beto, a polícia é capaz de desconfiar:
- Então… senhor… Sandro… tem alguma coisa que o comprometa?
- Não, não senhor bófia.
- Hum… e ia onde com tanta pressa?
- Senhor bófia, ia só ali a casa do meu irmão Martim, ya? Que estou atrasado para a a aula de equitação.
Os nomes que se ouvem na rua são outra grande diferença entre as duas zonas: na Buraca ouves o pessoal a gritar «Jailson! Wellington! Cristiano!»; em Alvalade ouves «Bernardo, venha cá à mãe.» ou «Carlota, não faz xixi aí.». Sim, este último era um rapaz a falar com a sua cadela buldogue francês, raça predominante nesta zona. Pitbull? Nem um, até a Zaya se sente desajustada em Alvalade, fora do seu elemento que é o gueto. E alcunhas? Nas zonas finas ninguém tem alcunhas de jeito. Na Buraca conhecia um migalhas, um xinadas e um mata-bófias, já em Alvalade o máximo que ouvi foi um «Xico» e uma «Tatá». É triste esta falta de criatividade.
Viver na Buraca causou-me traumas que ficam para sempre. Sou uma espécie de retornado de guerra com stress pós-traumático. Por exemplo, no outro dia ouvi gritos de desespero de uma senhora, vindos da praceta, e pensei «Já estão a assaltar uma velha!». Levantei-me, em sobressalto, fui à janela, meio escondido para evitar represálias e balas perdidas, vejo a senhora aos berros... com um gato «Vá já para casa!». Ri-me e pensei «Ya, esqueci-me que agora moro em Alvalade.». Algo parecido aconteceu-me na rua, à noite, em que oiço um assobio, «Fiu fiu», que em linguagem da Buraca quer dizer «Espera aí que eu gostava de te assaltar!». Ignorei e oiço «Oh, olha! Espera aí! Oh Oh!» e pensei, «Pronto, já vai haver merda.». Percebendo que se chegava mais perto, cerrei os punhos e quando o sinto nas minhas costas viro-me, de repente, e vejo que era um rapaz, baixinho, bem vestido de echarpe lilás que me diz «Peço desculpa por incomodar, mas por acaso podia emprestar-me um isqueiro, por favor?». São traumas que me vão ficar para sempre.
Quando vejo alguém a fazer jogging, ainda imagino que acabou de haver um assalto. Um gajo sai da Buraca, mas a Buraca não sai de um gajo.
Engane-se quem acha que Alvalade só tem vantagens. Trocava bem os parquímetros da minha rua por um ocasional roubo do auto-rádio com direito a vidros partidos. Já paguei mais à EMEL do que ao Kalu Xinadas que assaltava na minha zona e, bandido por bandido, prefiro ajudar o Kalu que tem oito filhos para alimentar do que chulos. Por isso, deixo sempre o carro no bairro social mais acima da minha rua que, ironicamente, é a única zona na qual não instalaram parquímetros porque lá dão-lhes outro nome: aquelas máquinas estranhas que dão moedas. Sim, já me roubaram um tampão da roda e um limpa para-brisas, mas compensa. Outra coisa que Alvalade tem pior é o problema da droga: não se arranja. Na Buraca, bastava ires ao 6 de Maio, paravas o carro e pedias o que querias numa espécie de Ganza McDrive aberto 24 horas. Em Alvalade, o máximo que te orientam é um Calcitrin.
Outra coisa diferente é a vizinhança. Na Buraca, os meus vizinhos faziam transacções estranhas a meio da noite. Lembro-me de, pelas duas da manhã, ver um vizinho a vir à rua e dar um pacote suspeito a um gajo, recebendo um envelope em troca. Percebo, às duas da manhã queres fazer um bolo, não há nada aberto para comparar farinha, tens de recorrer a um amigo. Duzentos gramas por dez mil euros? É justo, é mais ao menos o preço que praticam as estações de serviço. Em Alvalade, a vizinhança é pior: os meus vizinhos fazem maratonas de karaoke até as 4 da manhã a cantar Britney Spears, mas essa história já vos contei.
Tem sido uma adaptação complicada de fazer. Continuo a ir à Buraca muitas vezes e da última vez que jantei em casa dos meus pais ouvi tiros na rua. Ah, que saudades. Senti-me nostálgico e lembrei-me daquela vez que em Alvalade ouvi uns barulhos semelhantes, mas fiquei desiludido ao perceber que era fogo de artifício.
PS: Para matar saudades, vou dar o último espectáculo de stand-up comedy desta minha primeira tour no cine-teatro D. João V na Damaia, dia 16 de Fevereiro. Bilhetes à venda nos locais habituais e neste link.
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