Durante muitos anos passei férias em Lagos. Lagos no Algarve, não na capital da Nigéria porque isso era só parvo e, sendo eu da Buraca, quando vou de férias gosto de mudar de ares. Há quase 10 anos, quanto lá passava duas semanas de férias, certa noite, conheci uma das personagens mais caricatas com quem já tive o prazer de partilhar o tempo: o Wilson. O Wilson, que não é o nome real dele, estava a distribuir flyers de um bar naquela praga típica que se apodera das ruas algarvias durante Agosto: promessas de ofertas de shots da casa que depois vamos a provar e é só sumo; promessas de que o bar tem mais gajas que um concerto do Tony Carreira, embora mais novas e com os dentes todos, e depois chegamos lá e afinal só lá estão mais 20 gajos que olham ao redor enquanto percebem que também foram enganados. Resta beber o shot de sumo e uma cerveja só para não dar ar de pelintra, e ir embora. Foi durante este triste ritual que o Wilson nos abordou, a mim e um amigo, Tiago, na rua, por volta das 23h:
- De onde é que vocês são? – pergunta ele de sorriso rasgado.
- Damaia e Buraca. – respondemos.
- Damaia e Buraca! Primos!!! - grita ele enquanto nos abraça - É como se fossemos família, ya!?
- Ya… - respondemos em uníssono.
- Olha, é assim, tenho aqui estes flyers para aquele bar. Venham comigo que eu trato bem dos meus primos.
O Wilson era preto, tinha 33 anos, embora não aparentasse mais de vinte e poucos. Usava boné e tinha um dente da frente partido a meio. Tinha olhos grandes que ficavam ainda maiores quando ele os esbugalhava em concordância com algo que havia sido dito «Ya... Podes crer, primo!» ao mesmo tempo que a voz dele ficava aguda quando se entusiasmava com algo, sempre acompanhada daquele sotaque Angolano que lhe melodiava a voz.
Fomos com ele até porque era mesmo o bar para onde nos estávamos a dirigir antes de ele nos convidar. Chegamos, pedimos um jarro de Kamikaze que é uma mistura de sumo com vodka e que vamos bebendo em copos de shot. Normalmente é mais sumo do que outra coisa, mas como já lá ia há alguns anos, e agora com alguém da casa, acabou por ser um jarro que tinha uma garrafa de vodka inteira, sem gelo porque isso é para meninos, e um fundinho de sumo de limão que é para matar o escorbuto.
Começámos a beber e percebemos logo que se bebêssemos aquilo tudo sozinhos ia dar disparate.
- Wilson, isto está muita forte. Anda aqui beber connosco.
- Não posso, primos. Tenho de ir entregar flyers ainda para depois ter dinheiro para ir sair.
- Se beberes disto connosco já ficas aviado e não precisas de gastar tanto dinheiro depois.
- Ya… podes crer, primo! Então vou só buscar o dinheiro dos flyers que já entreguei.
Lá voltou, com três imperiais na mão:
- Fiz 35€, porra! Tomem aí cerveja para tirar o sabor do vodka. Um gajo tem é de ser profissional a beber e saber os truques.
Bebemos e fomos conversando, não me lembro bem sobre o quê, mas sei que passou por hip-hop, racismo e mulheres, ou damas, mais propriamente. Como se já fosse um amigo de longa data, não fossemos nós primos, calcorreámos mais bares, bebemos, conversámos com várias pessoas, sempre divertidos e enquanto partilhávamos peripécias passadas. E foi nesta partilha, já com visão turva e riso embargado, que me foi oferecido um pedaço de história contada que guardarei no meu coração para todo o sempre. A escrita não fará jus às expressões que ele ia fazendo com os olhos arregalados e os agudos da voz que eram transformados em sussurros nos momentos de suspense, mas garanto-vos que a história era esta, tal e qual:
«Primos, hoje até estava a pensar que não ia sair porque estava mesmo cansado. A noite de ontem foi uma loucura. Vou-vos contar mas não é para sair daqui… Estava ali num bar e comecei a meter-me com três americanas. Estive lá, na conversa, e depois elas convidaram-me para ir lá para casa. Eu fui, né? Claro. Cheguei a casa, fui no quarto duma delas, mas ela já estava a dizer que queria dormir que estava lá muito cansada e quê, mas para eu dormir lá que de manhã ela me “recompensava”. Não pode ser, primos. Ela deitou-se de lado e eu meti o jarbas de fora e comecei a dar assim de leve no cu dela, tás a ver? Perdeu logo o sono. Fodi ela. Fodi. Fodi até ela adormecer. Levantei-me para ir embora, fui à sala e vi lá a outra a dormir no sofá… dei-lhe uns beijos para ela acordar, ela acordou e… meti o jarbas de fora. Fodi ela. Fodi até ela adormecer. Nisto vou para vir embora e vem a outra a dizer «Ah fodeste as minhas duas amigas e não fodes-me a mim?» … Meti o jarbas de fora outra vez e fodi ela também. Fodi até ela ficar a dormir no quarto. Quando vou a sair, vi uma mala perto da porta e abri só naquela para ver. Tinha lá 200€! Tirei e vim embora.»
Quando ele acaba a história rimo-nos até às lágrimas! Posso estar enganado mas a minha intuição diz-me que aquela história era 100% real, tal foram os detalhes e a convicção com que ele a foi contando. No fundo estávamo-nos a rir também de um furto, mas 200€ para quem tinha feito um serviço a três estrangeiras era pouco se comparado com que os taxistas costumam roubar.
Disse-lhe para ir ao médico e ver se o jarbas dele tinha soníferos, já que ficaram as três a dormir. «Yaaaaa…. Podes crer priiiimo!» foi a resposta dele.
Dos bares fomos para uma discoteca, a única do centro de Lagos que todos os anos muda de nome a ver se se livra da má fama que a persegue, qual herpes crónico e incurável, tal como aquele que lá é passado de boca em boca e não só. «Qual má fama, Guilherme?», perguntam vocês muito pertinentemente: a fama de ser o último reduto dos bêbedos porque é o único sítio aberto depois das quatro da manhã e que tem como característica o chão mais pegajoso do que as salas de cinema aquando da estreia das 50 Sombras de Gray. Não estamos é a falar do mesmo tipo de fluidos, estamos a falar de uma consistência gelatinosa e aderente conferida por álcool despejado dos copos e regurgitado dos estômagos. Há porrada, invariavelmente, todas as noites e esta não foi exceção. Estamos lá, tranquilos, de cerveja na mão a pensar como é que caímos no erro de voltar a entrar naquele antro, a observar a fauna local que se resume a: 90% de homens, ingleses bêbedos, vermelhos do álcool e do princípio de melanoma que levam do Algarve; 10% de mulheres, inglesas bêbedas que gostavam de ter sido strippers mas não tiveram dinheiro para acabar os estudos. Nisto, surge confusão e há um copo lançado pelo ar, bala perdida, do qual o Tiago se desvia a fazer lembrar uma espécie de Neo da Damaia. O copo bate com estrondo na parede e somos atingidos pelos estilhaços, mas sem haver ferimentos. Vemos os seguranças a levar o Wilson em braços, e achámos que era a nossa deixa para ir embora já que ali já não se aprendia nada. Ao sairmos, vemos o Wilson num canto a rir-se:
- Viram, primos?! Mandei glass nele! - diz entusiasmado.
- Quase que me acertavas! – responde o Tiago.
- Desculpa aí, primo. O gajo meteu-se com a dama que eu estava a dar dica e armou-se em parvo a chamar os amigos. Foi logo glass nele.
Fomos comer qualquer coisa às roulottes e batizámos o cachorrão de jarbas e, talvez por isso, comemos um hambúrguer. Despedimo-nos sem saber se nos voltaríamos a ver mas com a certeza que tinha sido uma noite para recordar e contar aos netos.
Voltámos a encontrá-lo duas outras vezes nessas férias: no dia seguinte em que mal nos viu veio aos gritos na nossa direção «Priiiiimoooos!!! Fogo ontem a ontem é que foi! Porra, foi mesmo engraçado! Vamos sair hoje outra vez?». Fomos; e uma última vez, no último dia de férias, no terminar de uma confusão entre mim, o Tiago, e quatro gajos nos queriam bater só porque ele pediu lume a uma rapariga que era namorada de um deles. Homens machos, não é? Foi quando já estava tudo calmo que apareceu o Wilson:
- Primos! Como é que é?
- Nem sabes o que se passou, acabaram de sair daqui quatro gajos que queriam andar à porrada connosco.
- Onde é que eles estão? – diz ele enquanto saca algo do bolso – Vamos lá que eu dou-lhes com o meu chicote!
Não, não era o jarbas!
Era um pequeno chicote com uma esfera de metal na ponta que pelos vistos andava sempre com ele no bolso. Agradecemos a disponibilidade para abrir crânios em nossa defesa, mas dissemos que não valia a pena.
No ano seguinte voltei a Lagos, também com o Tiago, e encontrámos novamente o Wilson. Mal o vimos fomos logo cumprimentá-lo e, apesar de se lembrar de nós, mostrou-se pouco ou nada entusiasmado. Estava estranho e percebemos logo isso. Disse-nos:
- Hoje não sou boa companhia, é melhor vocês irem embora.
- Então? O que é que se passou?
- É assim, vieram cá uns amigos meus aí de Portimão e quiseram dar na heroína e sabem como é que é, primos.
- Como é que é?
- Não podia dar de careta, né? Então tive de dar nela e agora não estou boa companhia.
Só me lembrei de sábias palavras de um drogado da Damaia «É a vida c'um sócio escolheu.». Ficámos com ele na mesma a tentar animá-lo e a recordar-lhe a história do jarbas. Ele riu-se e nós também, outra vez até às lágrimas. Ficámos a conversar um bocado e ele foi desabafando connosco. Tinha estado preso uns tempos, não nos disse porquê, embora fosse óbvio que teria sido tráfico ou assalto. Podia também ter sido por mandar alguém para o hospital com ferimentos do seu chicote, ou do jarbas. Falou-nos da vida na prisão com arrependimento no olhar, afirmando que preferia morrer do que voltar para lá e que foram os piores meses da vida dele. Falou-nos da vida complicada que teve em pequeno e não havia nada que pudéssemos fazer por ele a não ser dizer «Pois, é complicado. É preciso é levantar a cabeça e seguir em frente.» e todos esses clichés que o pessoal que não tem noção que faz parte do grupo dos privilegiados costuma dizer. Passado uma hora, na qual ele foi alternando entre o alegre e o depressivo e quase agressivo, despedimo-nos dele antes que houvesse males maiores. Antes de nos irmos embora, arregalou-nos os olhos que brilhavam, tanto a anunciar lágrimas que não queriam sair como as drogas duras que tinha no sangue:
- Queria agradecer-vos primos.
- Então?
- Eu hoje não estava mesmo boa companhia e fizeram-me bem. Se não fossem vocês aqui a conversar comigo hoje não sei o que teria feito. A vossa companhia salvou-me.
Já voltei a Lagos muitas vezes e nunca mais o vi. Não sei qual foi a vida que o sócio Wilson escolheu, mas sei que a escolha dele já estava condicionada à partida e nunca pode ter sido livre e com as mesmas oportunidades que as minhas.
PODES SEGUIR-ME NO INSTAGRAM