20 de maio de 2017

O Correio da Manhã é um acidente de viação



Para quem não sabe, o Correio da Manhã é aquele molho de folhas e amontoado de caracteres online que dizem formar e conter peças e artigos jornalísticos. Em parte, é verdade. O Correio de Manhã também faz jornalismo e investigação de qualidade, mas um jornal não pode fazer isso, também, mas sim, só isso.

O Correio da Manhã é um acidente de viação na via contrária da autoestrada.

Vemos o acidente e a nossa alma de bate-chapas e de médico legista impele-nos a abrandar, embora refilemos com os da frente por irem devagar. Ficamos desiludidos se o acidente for leve e quantas mais ambulâncias melhor, «Ui, cheira-me que alguém morreu.» dizemos numa curiosidade e contentamento mórbido de não ter sido connosco. Não nos iludamos, fazemos todos parte do problema. Ao falar do Correio da Manhã ou de alguma coisa que eles fizeram estamos a dar-lhe poder e a fazê-lo crescer. Ele alimenta-se disso. É uma espécie de demónio que se enche a barriga com a raiva e os medos das pessoas. Neste caso recente do vídeo dos alegados abusos, por exemplo, das duas uma: ou não vimos o vídeo e é parvo termos uma opinião sobre ele, ou vimos o vídeo e fizemos exactamente o que o Correio da Manhã nos pediu ao dizer «VEJA O VÍDEO AGORA», ou, se fossem totalmente transparentes, «VEJA O VÍDEO PORQUE NÓS TEMOS UM ANÚNCIO ANTES E ISSO VAI DAR-NOS DINHEIRO E NÓS POR DINHEIRO SÓ NÃO DAMOS O CU A NÃO SER QUE SEJA UMA QUANTIA ACEITÁVEL PARA LEVAR NO CU.»

É uma notícia relevante? Não. Relevante ao ponto de se publicar o vídeo e passar na CM TV em loop onde quase dá a entender que aquilo foi masturbação que durou horas? Muito menos. O problema começa quando, desde logo, o CM decide chamar aquilo de violação, fazendo assim uma julgamento sumário. Bem sei que quem se diz jornalista e publica estas coisas bem que pode dizer que é polícia, advogado e juiz, porque vive num mundo da fantasia a brincar às profissões. Não sei se é violação ou não, não consigo perceber e não tenho problemas em dizer algo que as pessoas hoje em dia parecem ter desaprendido: dizer «Não sei.». Nos dias de hoje parece que é mais mal visto dizer que não se sabe do que ter uma opinião baseada em nada em que se estiver correcta foi apenas porque havia 50% probabilidades de isso acontecer. Se ficar provado que houve violação, desejo uma morte lenta ao violador, mas, até lá, não sei o que foi aquilo. Sei que há desde logo uma violação que é o facto de terem filmado e publicado aquele vídeo a não ser que eles soubessem disso e não se tenham importado. Pouco provável, mas não seriam os primeiros. No entanto, qual é a diferença entre aquelas abéculas que filmaram e aplaudiram, quais cheerleaders do pinanço alheio porque eles não sabem jogar, e o CM que amplifica até à exaustão o vídeo? Parece-me que nenhuma.

Se o CM não tem publicado, quase ninguém tinha visto o vídeo e o processo seguia naturalmente. Seria ou não crime público ou a rapariga faria ou não queixa, a polícia investigava, e os juízes sentenciavam. Aquele processo natural de uma sociedade civilizada. Assim, não só toda a gente foi julgada na praça pública, incluindo a rapariga, como a foto dos alegados violadores foi propagada nas redes sociais com o carimbo "VIOLADOR" sem que tivesse havido sentença. Não sei muito de legislação, mas se nunca houver condenação por violação calculo que as pessoas que partilharam a foto dos rapazes com esses títulos incorrem em algum crime de calúnia e difamação. Para a próxima não filmem, dirão alguns, e são capazes de ter razão. A rapariga, consentido ou não, com a amplificação deste vídeo por parte do CM terá ganho uma alcunha na faculdade porque sabemos bem a sociedade onde vivemos e basta ir ver os comentários da dita tasca jornaleira. Sabem aquelas coisas que se faz ou diz quando se está bêbedo que no dia de ressaca ficamos a remoer naquilo com uma vergonha no baixo ventre e a contrair os músculos do pescoço enquanto dizemos para nós mesmos «Para que é que eu fiz aquilo? Sou mesmo otário. Será que as pessoas se lembram?». Imaginem que havia um vídeo de todas essas coisas vistas por Portugal inteiro. Epá, era capaz de ser uma existência chata de se ter, apesar de reduzir o consumo do álcool, provavelmente.

O Correio da Manhã sempre foi uma boa muleta para muitos humoristas, mas nos dias de hoje deixou de o ser porque uma grande ferramenta do humor é o exagero. Lembro-me de quando saíam notícias estapafúrdias e se faziam piadas com o CM a dizer «O CM já foi tão baixo que só falta vermos uma notícia a dizer "Violação filmada e publicada nas redes sociais! VEJA JÁ O VÍDEO!"». Essas piadas morreram, porque o CM é o pináculo da hipérbole da caricatura do ridículo. Não vale a pena boicotarem o CM. A maioria das pessoas já boicotou a inteligência há muito e temos de perceber que em todas as sociedades civilizadas há deste tipo de jornais que fazem as delícias das massas emburrecidas. Também são precisas essas pessoas, caso contrário como é que nos iríamos regozijar com a nossa elevada inteligência? É como sair à noite com amigos feios, dá sempre jeito existirem.

O Correio da Manhã não é o jornalismo que precisamos, mas é o jornalismo que merecemos.

Quanto a mim, se um dia me pagarem bem para escrever crónicas para lá, não vou recusar e se me acusarem de me estar a vender e a colocar um preço nos meus valores, eu vou responder que não podia perder a oportunidade de adicionar qualidade ao Correio da Manhã, fazendo assim parte da solução e não do problema. Sim, somos todos hipócritas.




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