11 de maio de 2017

Viver na Buraca deu-me estaleca



Perguntam-me muitas vezes como foi crescer na Buraca, como se eu fosse uma espécie de refugiado sírio que calcorreou meio mundo, fintou os perigos todos e sobreviveu para contar a história. Respondo sempre que foi normal, e depois conto alguns episódios recorrentes e vejo na cara das pessoas que para elas aquilo é tudo menos normal, especialmente se forem pessoas de Cascais a fazer essa pergunta. A verdade é que nunca pensei muito nisso na altura, para mim, os assaltos e medo faziam parte da normalidade quotidiana tal como acredito que façam em muitas outras zonas semelhantes. Vendo à distância, percebo que a minha juventude estivesse cheia de peripécias anormais para a maioria das pessoas que vivem em bairros de melhor fama, no entanto, acho que foram essas experiências que fizeram uma pessoa com estaleca para lidar com algumas situações da idade adulta.

Na escola preparatória da Damaia havia um ritual diário: ir comprar pão com chouriço à cantina no intervalo grande. Passados vinte anos, aquele continua a ser o melhor pão com chouriço de sempre: acabado de fazer, estaladiço, e a queimar as mãos e a aquecer o estômago.


A melhor review à qualidade daqueles pães era o facto de nos serem sempre roubados.

Sabes que uma comida é boa quando há pessoal a fazer espera à porta da cantina para roubar quem ia comprar pão com chouriço. Não roubavam croissants com chocolate, nem merendas mistas. As hienas do intervalo grande tinham apenas como alvo a deliciosa iguaria de enchido. Imaginem o que era se a Padaria Portuguesa tivesse no TripAdvisor a review «Sempre que vou lá comprar pão de deus para levar, alguém me assalta à porta e me rouba o pitéu.». Vale muito mais do que cinco estrelas! Cedo percebi que para conseguir comer descansado teria de sair da aula e ir a correr para a cantina, comprar o pão e ir esconder-me atrás de um pavilhão a comer descansado. Curiosamente, atrás do mesmo pavilhão onde algumas raparigas também comiam uma espécie de enchido a jogar ao bate pé precoce para a idade. Tinha de comer o pão rapidamente antes que mo viessem roubar o que me impedia de o degustar como ele merecia. Imaginem o que seria ir ao melhor restaurante do mundo e dizerem-vos que apenas tinham trinta segundos para apreciar aquela soberba comida. A maioria dos roubos não eram de perda total. Havia uma certa cortesia no assalto e apenas nos "pediam" «um coche», sabendo que se nos roubassem por inteiro deixaríamos de o comprar diariamente. O próprio pão era maior do que o normal porque os fabricantes já sabiam que era sempre para mais do que uma pessoa. Chamemos-lhe uma espécie de comunismo à força em que apenas alguns contribuíam para a cooperativa. No entanto, isto ensinou-me que era importante partilhar e dividir com quem tem menos do que eu e ensinou-me a ser uma pessoa generosa e a perceber que se não fosse solidário, provavelmente, iria para o hospital com uma facada no bucho e não dá para comer pão com chouriço por sonda.

Já na escola secundária na Damaia, que ia desde o 7º ao 12º ano, havia no caminho um rapaz ao qual apelidámos 50 Cent. Estava sempre no mesmo sítio e era uma espécie de portageiro que pedia sempre cinquenta cêntimos aos incautos alunos que por ali passavam. Havia quem preparasse pagamento antecipadamente e levasse o dinheiro na mão só para não fazer fila para os restantes. Havia um caminho sem portagem? Havia, mas era mais longo. Isto fez que enquanto adulto lidasse muito melhor com as portagens. As SCUTs passaram a ser pagas? Normal. Não me incomodou. Só pensei no quão giro seria se encontrasse o 50 Cent da Buraca numa dessas portagens. Sim, porque à partida terá sido o melhor trabalho que ele conseguiu arranjar. Estou a brincar, soube que ele morreu num tiroteio com a polícia. À vinda da escola e durante Agosto, normalmente não havia portagem fazendo lembrar a ponte 25 de Abril, mas era preciso ter rotas de fuga pensadas. Tanto eu como os meus amigos mais próximos que fazíamos esse percurso diariamente metíamos o Michael Scofield a um canto no que diz respeito a saber caminhos e ter manobras de diversão para escapar aos criminosos. Os miúdos normais desta idade detestavam os dias em que tinham aulas às tardes porque sentiam que não tinham tempo para jogar consola, já eu, também não gostava, mas porque sabia que nesses dias as probabilidades de ser assaltado aumentavam substancialmente porque a maioria da gandulagem é bicho que só acorda depois de almoço. Durante o inverno, em que sair às 18h significava sair de noite, a coisa ainda piorava. O caminho tinha pouca luz e sentia-me a percorrer a selva onde qualquer barulho podia ser sinal de perigo, especialmente o assobio. Para mim um assobio não é um som agradável. Um assobio era sinal que nos estavam a chamar para nos tentar assaltar. Ainda hoje, um assobio numa zona remota coloca-me em alerta e de punhos cerrados preparado para o pior. Isso e chamarem-me «Ó, ó, tu, espera aí!» como já aconteceu em Alvalade e eu ignorei e, sentindo a pessoa a aproximar-se por trás, cerrei os punhos e virei-me de repente pronto para levar na boca. Era só um rapaz de echarpe rosa que me queria pedir um isqueiro para acender daqueles cigarros fininhos que as nossas tias solteiras fumam. Ri-me por dentro e pensei: «Ya... esqueci-me que estava em Alvalade.». Senti-me um retornado do Ultramar com traumas para a vida.

Quando as pessoas se queixam que os vizinhos andam a fazer obras eu esboço um sorriso. Na Buraca, o barulho que os meus vizinhos faziam era o de gritar por socorro na praceta quando estavam a ser assaltados. Aconteceu várias vezes e o pior de tudo é que nunca consegui filmar. Isso e tiros a meio da noite, seja para assinalar a chegada de um carregamento de droga, para testar novas armas para vender, ou em tiroteios e perseguições com a polícia a passar à alta velocidade por baixo da minha janela do quarto. Por isso, quando faltava a luz, podia sempre ir ver o Breaking Bad em 3D.

As pessoas que crescem em sítios normais compram bolas de futebol de marca para jogar porque acaba por compensar gastar mais dinheiro numa bola que dura mais e não vai ficar com a câmara de ar à mostra meia dúzia de jogos. Não na Buraca.


No ringue da Buraca as bolas de futebol têm uma esperança média de vida muito reduzida, possivelmente de apenas um jogo ou só de um aquecimento.

«Deixa dar uns toques.» nunca era dito por alguém que se queria juntar a nós para jogar. Quando trabalhava como consultor conseguia lidar bem com o stress muito por causa das experiências que passei na Buraca. Os prazos apertados e as entregas de projectos deixavam os outros à beira do enfarte, mas, para mim, era só mais um dia normal. Para quem fazia equipas roda-bota-fora no ringue da Buraca e tinha de jogar com as outras equipas de fora a gritar «Bazem! Nós queremos jogar!», toda a pressão profissional é relativizada. O mesmo quando os chefes gritavam e barafustavam já que quando até dentro da escola, no campo de futebol, havia chuva de pedras vinda do lado de fora do muro, o resto fica fácil. «Isto está a arder!» diziam muitas vezes os meus colegas quando havia algum problema grave e eu só me lembrava daquela vez que choveram cocktails molotov dentro da escola enquanto estávamos a ter aulas de educação física. Meninos.

Preferia eu ter nascido e crescido numa vivenda com piscina na Quinta da Marinha? Houve tempos em que pensava que sim, mas à medida que vou amadurecendo percebo que isso ter-me-ia tornado numa pessoa diferente da que sou hoje, com amigos diferentes e vivências diferentes que tanto me dão jeito no dia a dia. Estou a gozar, claro que preferia.




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