Da última vez que fui ao Porto um pneu rebentou, que é como quem diz que dei com ele na quina de um passeio a estacionar feito maçarico. Onde estava não havia espaço para trocar o pneu e então fui com ele de rojo em busca de um local mais recatado, onde houvesse espaço e onde ninguém passasse e me visse o rego enquanto dava à manivela do macaco. Lá parei o carro, retirei os instrumentos da bagageira, o pneu suplente e lá me deitei no chão a ver onde é que se encaixava o símio, já que nunca o tinha usado naquele carro. Nisto vejo uma silhueta azul a aproximar-se a passo vagaroso de quem está a dar tempo para ver os outros a fazerem figuras de azelhas. Era um senhor de meia idade, vestido de fato de macaco e de semblante carregado. Pára ao lado do carro, impávido, sereno e de braços cruzados, eu olho para cima e começa a seguinte conversa:
- Precisa de ajuda? - pergunta ele.
- Acho que me consigo desenrascar sozinho mas muito obrigado. - digo eu. Nisto, ele deita-se no chão automaticamente, qual comando pronto para o combate e diz:
- O macaco é para meter aqui em qualquer sítio. Ora aponte para aqui.
- Ok, obrigado.
- Desaperte-o primeiro homem! - diz ele num tom severo.
- Sim sim, eu ia fazer isso.
- Pronto, está bom, a roda já levantou para que é que está a dar à manivela mais? Você já trocou um pneu alguma vez? - pergunta ele de sobrolho levantado.
- Já troquei duas vezes mas já foi há muitos anos por acaso. - respondo eu enquanto vou desapertando uma porca.
- Pois, deve ter sido mesmo há muito tempo. Faça assim com o dedo olhe. Assim é muito mais rápido homem!
- Ah ok, isto quem sabe sabe.
- Eu não sei nada! Você é que sabe menos que eu. - diz ele num tom jocoso. Nisto levanta-se e fica a observar enquanto eu aplico a técnica que ele me tinha ensinado.
- Isso. Isso. Isso. Isso. - vai repetindo ele enquanto eu acabo de desapertar as porcas e tiro o pneu do encaixe. Ele prontamente começa a examinar o rasgão, enfiando lá dois dedos de forma marota.
- Então e isto rebentou assim?
- Não, foi ali numa quina a estacionar.
- Ah... estou a ver, estou a ver. Era a sua namorada que ia a conduzir? - diz ele com ar sério.
- ... Não, ela não tem carta.
- Se calhar mesmo sem carta não fazia uma coisa destas, não era menina? Bem, para além dos passeios, tem é que ter cuidado a estacionar aqui mas é por causa dos moedinhas. Eles agora até têm maquinetas para detectar se as pessoas têm os computadores na bagageira, os filhas da puta.
- Pois já ouvi dizer, eu isso nunca deixo no carro.
- Então mas tem ali a mala do computador na bagageira.
- Sim mas aquilo não tem computador, é só mesmo a mala com uns papeis.
- Pronto, mas os gatunos não sabem disso não é? Assim assaltam-lhe o carro na mesma e só depois é que vêem que não tem lá o computador dentro.
- Mas a mala não estava à vista também, eu nisso tenho cuidado.
- Mas eu não lhe disse que eles têm maquinetas que detectam?
- Então... mas só detectam o computador, não é a mala do computador...
- Já experimentou alguma?
- Não...
- Pronto, então não sabe. Eles inventam tudo, tudo. Então para roubar é que eles inventam. Oh oh, se inventam os filhas da puta - diz ele abanando a cabeça. Nisto já eu tinha colocado o pneu e preparava-me para começar a apertar as porcas.
- Pouse-se no chão primeiro! Então vai apertar assim depois ele não ajusta!
- Sim senhor, isto é só truques.
- Qual truques qual quê, isto chama-se procedimento correcto.
Entretanto já eu baixei o carro e tirei o macaco e estou a apertar o pneu:
- Se aperta pouco o pneu ainda lhe voa. Dê-lhe com o pé que assim não vai lá, mas olhe que se aperta muito depois vê-se fodido para o tirar quando precisar.
- Pois, pois eu sei, acho que está bom já. - O carro não é meu por isso você é que sabe. Cada um aperta como quer.
- Pronto, acho que já está bom.
- Pronto, você é que sabe. Se o carro fosse meu eu dizia-lhe se estava bom, agora como é seu você é que sabe, está-me a compreender?
- Apertar mais um bocadinho então?
- Pois, não sei, você é que sabe homem. Se fosse meu apertava como eu gosto, o carro é seu aperta como você gosta.
- Pois claro, está bom então, muito obrigado pela ajuda.
- E agora precisa de um pneu?
- Pois vou ter que ver de um quando chegar a Lisboa.
- E se tem um furo na viagem, já pensou nisso?
- Era muito azar também.
- Podia não ser azar, podia ser falta de jeito só. Você vai ali ao Costa, diga-lhe que vai da parte do Nelson e ele arranja-lhe um pneu barato.
- É aqui perto?
- Ó homem, se lhe estou a dizer é porque é. É virar ali à direita e depois à esquerda vai ver um portão, está a ver? Um portão azul grande que em cima tem uma placa que diz "Pneus Low-Costa".
- Low-Costa?
- Sim, é um trocadilho caralho! Porque ele tem o apelido Costa.
- Está giro sim senhor. Pronto eu passo por lá a ver então, muito obrigado.
- Mas passa se quiser só, estou só a dizer que lá é barato. Mas você já sabe como é, se o carro fosse meu...
- Mas como é meu eu é que sei.
- Ora vê como você aprende rápido. - diz ele dando um sorriso pela primeira vez.
- Pronto, está tudo então, muito obrigado pela ajuda! - digo eu estendendo-lhe a mão.
- De nada caralho.
E foi isto. Falou-me sempre de forma condescendente e às vezes até arrogante e bruto mas via-se que era a forma dele máscula de mostrar afeição. Ele podia ter passado ao lado, até porque eu não era nenhuma donzela em apuros mas decidiu ficar a ajudar. Via-se pela cara dele que mais que ensinar-me a mudar um pneu, estava orgulhoso de me estar a ensinar a ser homem.
PODES SEGUIR-ME NO INSTAGRAM