15 de abril de 2014

Carta de Deus para o Homem



Caros humanos, é Deus quem vos escreve. Já não falávamos há algum tempo e vejo que as coisas continuam na mesma. Quando criei o Big Bang e deixei a ordem natural das coisas desenrolar-se, longe estava de saber na merda que ia dar. Dizerem que eu vos criei à minha imagem é a pior ofensa que me podiam fazer. Eu não vos fiz. Vocês fazem-se a vocês próprios todos os dias. Vocês criam os vossos filhos e ensinam-nos a fazer parte da sociedade como cordeiros. A não desafiar a autoridade. A não me desafiarem porque eu sou inquestionável, sem se questionarem a vocês próprios no que acreditam. Vocês não acreditam em mim, vocês acreditam no que vos dá jeito.

Eu é que já não acredito em vocês. Já desisti. Vejo rasgos de alegria espaçados por morte e miséria. Vejo picos de solidariedade no meio de planaltos infindáveis de mesquinhez e inveja. Vejo amor nas esquinas de avenidas inteiras povoadas por ódio. Vejo uma ou outra bandeira de paz içada em barcos que navegam por mares de lágrimas choradas de crianças inocentes. Já mudei o vosso canal. Vocês não são únicos no universo, há outros reality shows com aliens muito mais interessantes que vocês. Vejo Católicos, Protestantes, Muçulmanos e Judeus, todos a contar histórias para ver qual dos seus Deuses é o melhor. Discutem e matam em nome daquele que, segundo eles, é o que melhor personifica a verdade e o amor.

Cristãos, deixem-me que vos diga que rezar pais nossos e avés marias não vos absolve dos vossos pecados. O que absolve é o arrependimento e não reincidência dos actos. Muçulmamos, deixem que vos diga que não estão aqui 72 virgens ao pé de mim à vossa espera. Se acham que devem praticar o bem com esse objectivo então é porque o céu não é o lugar para vocês. Judeus, deixem que vos diga que rezar a seguir às refeições não vos abre as portas para o céu. De que serve rezar enquanto se banqueteiam com alimentos colhidos por um qualquer agricultor que quase não ganha para sobreviver. Ou por uma criança que é paga em taças de arroz? Protestantes, deixem-me que vos diga que sei que tentaram desacreditar a opulência do Catolicismo. Mas obrigar as vossas crianças a decorar a Bíblia não foi demais? Tinham ensinamentos sobre bondade e valentia nos três porquinhos e no capuchinho vermelho, sem terem que decorar as 2000 páginas cheias de sangue e vingança. Ateus, preocupem-se menos em tirar crédito às crenças dos outros e preocupem-se mais em espalhar a igualdade e o amor com o mesmo fervor que dizem que não acreditam em mim. A verdade não é a não existência de Deus mas sim a existência da felicidade.

Meio mundo vive na miséria para que a outra metade viva remediada, enquanto uma ínfima minoria vive com tudo o que devia ser de todos. E perguntam porque é que eu permito que tudo aconteça sem interferir? Sem fazer nada? Dizem que escrevo direito por linhas tortas mas a verdade é que Deus não sou eu. São vocês. Mas parece que se esqueceram disso. Inventaram-me e agora dão-me as responsabilidades dos actos que são vossos. E acham que a moralidade vem das vossas invenções? Foi preciso um maluco dizer que eu lhe disse no monte que matar e roubar era pecado para que vocês percebessem que realmente não era boa ideia? Só há um mandamento verdadeiro: trata os outros como gostas que te tratem a ti. Trata todos os estranhos como se fossem membros da tua família. É a lei fundamental da moralidade humana. Não são precisas tábuas inscritas para isso. Construíram pontes e aviões, foram à lua e ao fundo do mar e não conseguiam chegar a essa conclusão por vocês próprios?

Tinham um planeta com tudo o que precisavam, mas vocês decidiram que o que vos fazia falta eram outras coisas. Tinham tudo aí à vossa disposição. Lenha para se aquecerem, comida no chão e nas árvores, abrigos fáceis de conseguir. Mas acharam-se melhores que eu, e que queriam mais e melhor. E agora são escravos da segunda feira, para ter dinheiro para se aquecerem, comerem e se abrigarem. Distorceram tudo. Criaram regras para controlar e castrar o vosso espírito livre e criativo com que a causalidade do universo vos presenteou. Apelidaram o prazer de pecado e criaram monstros celibatários de batina que violam crianças. Padres que ganham a vida a gastar o meu nome numa boca que não merecia sequer estar viva. Celibato para quê? O que tenho eu a ver com a vida de cada um? Se tudo foi feito por mim para que é que existe o orgasmo se não para desfrutar dele? Fodam mais e façam menos guerras.

Pode ser que me surpreendam. Pode ser que um dia percebam porque aí estão. Que não interessa se eu existo ou não se não conseguirem ser felizes em conjunto. Pode ser que chegam à conclusão que vocês é que são omnipotentes e omnipresentes na única vida que vos é garantida. Que não é eterna mas que podem deixar a vossa marca para sempre. Que são o nada e o tudo, o alfa e o omega e que só todos juntos podem ser um só.

Ass: Zé




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